terça-feira, 26 de novembro de 2024

Quem sustenta o jornalismo?

 



Pesquisei os significados do verbo sustentar e eles caem bem para os incômodos provocados por respostas à pergunta do título. Parte deles nasceu de um conjunto de constatações nascidas em grupos de jornalismo virtuais dos quais participo. São as seguintes: 1) quantidade expressiva deste sustento tem vindo hoje de editais de tudo quanto é tipo e fonte; 2) os editais trazem à reflexão a lógica do debate sobre políticas públicas universais ou focalizadas e 3) parte expressiva dos editais distribui recursos de financiadores cuja origem e prática histórica devem ao menos serem alvos de reflexão cuidadosa. 

Trago exemplos: um número significativo de editais tem focado a cobertura jornalística da Amazônia, em especial o dito jornalismo de dados ambientais. Editais para reportagem (e também cursos) nesta área envolvem, por exemplo, a Open Knowledge International, rede cujos parceiros, apoiadores e financiadores incluem o Departamento de Estado dos Estados Unidos, a Fundação Lemann, catalisadora de interesses do grande empresariado, e o Google News Initiative, que “busca combater a desinformação, compartilhar recursos e criar um ecossistema de notícias diverso e inovador” mas, de concreto, está mesmo é matando o jornalismo.

Outra apoiadora destes editais para cursos e coberturas na região amazônica é USAID, a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional, fundada pelo presidente John F. Kennedy nos anos 1960 e cuja missão é a seguinte: “Em nome do povo americano, promovemos e demonstramos valores democráticos no exterior e avançamos um mundo livre, pacífico e próspero”. Uma breve referência ao que a USAID já fez no Brasil: logo depois do golpe de 1964, apoiado pelo governo dos Estados Unidos, o Ministério da Educação e Cultura (MEC) firmou acordos de assistência técnica com esta agência que foram a base de uma profunda reforma do ensino brasileiro voltada para os interesses do mercado.

Em maio passado, a agência anunciou um investimento de 21 milhões de dólares para “apoiar a implementação da Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial de Terras Indígenas (PNGATI) na Amazônia brasileira”. Segundo o site da USAID Brasil, os “projetos representam a continuação de uma colaboração de longa data entre o Brasil e os Estados Unidos, que já se estende por 200 anos”. A tal parceria conta com a participação de diversos órgãos governamentais e entidades, como a Agência Brasileira de Cooperação (ABC), o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA), o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI). São, portanto, órgãos do governo brasileiro a serviço dos interesses dos Estados Unidos na região detentora de primeiros lugares em quesitos (água, floresta, recursos minerais) tomados como mercadoria nos negócios destruidores da natureza.

O documento “Estratégia climática da USAID 2022-2030” (disponível em https://www.usaid.gov/sites/default/files/2023-02/USAID-Climate-Strategy-BR-Portuguese.pdf) merece leitura atenta. Ele indica que os “parceiros” preferenciais da agência são “Povos Indígenas, comunidades locais, mulheres, jovens e outros grupos marginalizados e/ou com pequena representação em pelo menos 40 países parceiros”. É o público mais frequentemente citado para atendimento nos editais. 

Segundo a USAID, os “grupos marginalizados e com pequena representação podem incluir, mas não estão limitados a, mulheres e jovens com atenção especial para meninas, pessoas com deficiência, pessoas LGBTQI+, pessoas deslocadas, migrantes, povos e comunidades indígenas, crianças na adversidade e suas famílias, idosos, minorias religiosas, grupos étnicos e raciais, pessoas em castas inferiores, pessoas com necessidades de saúde mental não satisfeitas e pessoas de diversas classes econômicas e opiniões políticas”.  

A página 19 do documento traz uma justificativa importante:

“Povos Indígenas e comunidades locais são os principais interessados e agentes de mudança para enfrentar a crise climática. Os Povos Indígenas e comunidades locais têm direitos de posse e/ou gestão de mais de um quarto das terras do mundo, que se cruzam com 40 por cento das Áreas Protegidas terrestres, paisagens intactas e ecossistemas críticos. Existem evidências claras e crescentes de que as terras que os Povos Indígenas e as comunidades locais administram são altamente eficazes para sequestrar as emissões e promover a adaptação através da gestão da terra e da água”.

Pois é! Tudo negócio! O fato é que, como diz a professora Camila Feix Vidal, do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e integrante do Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA/UFSC), essas agências, com alegadas razões humanitárias e sob roupagem virtuosa, escondem interesses materiais bem concretos, entre eles dominar, entre outros, o conhecimento dos povos originários. A palestra na qual Camila fala sobre o assunto, promovida pelo IELA/UFSC, pode ser vista em https://www.youtube.com/watch?v=j6__1iklgww.

É nesta perspectiva que deve ser lida a menção do documento à mídia: “Apoiar a sociedade civil e a mídia, incluindo organizações lideradas por cidadãos e jovens, mídia independente e jornalismo investigativo para se engajar de forma segura e eficaz na defesa, educação, monitoramento e divulgação dos objetivos e ações climáticas”.  

Pensando nos significados do verbo sustentar, tomo o de “perpetuar” para que organizações e coletivos que funcionam com recursos dessas agências fiquem de olho para identificar que realidade perpetuam. Não se trata de certo ou errado, e sim de não cair em contradição na defesa do jornalismo a serviço da emancipação humana, na perspectiva da teoria marxista do jornalismo do teórico gaúcho Adelmo Genro Filho.

DINHEIRO PÚBLICO

Os editais em diferentes áreas aparecem como saída para pessoas, coletivos, associações etc que buscam fazer o jornalismo hoje cada vez mais raro nas empresas jornalísticas, aquele capaz de interpretar a realidade na perspectiva da totalidade. Uma questão a ser pensada, porém, é que esses editais atendem geralmente perspectivas focalizadas de jornalismo. Isto não seria um problema se estivesse quitada a dívida com o jornalismo que aspira à compreensão da totalidade dos fenômenos da realidade. Os recursos alimentam a sobrevivência das capelas, mas quem alimenta a sobrevivência da catedral?

Os editais mascaram uma situação perversa: a recente divulgação, pelo Ministério da Fazenda, da lista das empresas beneficiadas por renúncias fiscais apresenta mais de uma dezena de empresas de comunicação. São milhões de reais que deixam de ir para os cofres públicos, alimentando o caixa de grupos de mídia diariamente refestelados no mercado noticioso da ideologia enquanto pingam, dos editais, recursos magros para o jornalismo efetivamente comprometido com a maioria da população.

Em Santa Catarina, onde os dois maiores grupos de mídia transformam os portais em boletins de ocorrência e sucessão de banalidades, o jornalismo vai rapidamente morrendo enquanto crescem os repasses de recursos públicos por eles recebidos. Tal situação foi levada à bancada do PT e do PSOL ainda no primeiro semestre, mas de lá para cá nada mudou. A comunicação/jornalismo não aparece como prioridade no campo partidário progressista catarinense, ao contrário dos grupos dominantes, que não descuidam de suas usinas ideológicas regadas a dinheiro público.

A página da Assembleia Legislativa escancara o fato. No link sobre Despesas e Receitas/Contratos de Publicidade, aparecem centenas de repasses de janeiro até o final de novembro. Os repasses, beneficiando especialmente os associados da Associação Catarinense de Emissoras de Rádio e Televisão (Acaert), jorram da ALESC, do governo do estado, do Ministério Público estadual e do Tribunal de Contas, sem falar do dinheiro repassado por prefeituras, e não se ouve um pio. As poucas verbas que caem deste pires gigante, sobras de uma ou outra campanha publicitária que o nosso campo partidário eventualmente consegue acessar, são repassadas a uma ou outra entidade sem que se conheçam os critérios, e o mesmo vale para eventuais emendas parlamentares quando, muito raramente, se lembram do jornalismo. Na real, o jornalismo vale pouco para o nosso campo. 

JORNALISMO CONTRA-HEGEMÔNICO

O jornalismo contra-hegemônico implica um projeto contra-hegemônico que o sustente. Por isso, a lógica que move coletivos independentes é buscar apoio nas centrais sindicais, sindicatos, partidos e movimentos populares que lutam pela constituição de outra forma de organização social. No primeiro semestre, buscamos neste meio, em Florianópolis, possibilidades de apoio para a produção de um veículo de comunicação que fizesse jornalismo em um período tão pródigo em disseminação de ideologia quanto o período eleitoral. Sem fatiar, segmentar, fragmentar, focalizar. Jornalismo para cobrir a cidade e a vida da população. A repercussão do pedido de apoio foi quase nula. 

Percebe-se que, também no campo popular, a constituição de “capelas” é a prioridade. O investimento, quando há, vai para materiais e redes sociais próprias. Numa capital de 500 mil habitantes, também não se consegue 100 apoiadores individuais que paguem 100,00 ou 200 que paguem 50 para ao menos mantermos um portal de notícias. Em Porto Alegre, por exemplo, Sul21, Brasil de Fato RS e Matinal fazem jornalismo independente sem fatiar os fenômenos da realidade. A descrição de seus perfis no Instagram traz essa percepção: Matinal: “Jornalismo local e cultura de Porto Alegre. Porto para quem se importa”; Brasil de Fato RS: “Uma visão popular do Rio Grande do Sul, do Brasil e do mundo”. Sul 21: “Jornalismo independente e de impacto social”. 

Para concluir, recorro a outros cinco significados do verbo sustentar: 

- Impedir que alguma coisa caia.

- Fazer frente a; resistir a.

- Alimentar; dar o necessário para viver a.

- Fortificar; defender.

- Pelejar a favor de; defender com argumentos. 

E pergunto: quem, nesta ilha de jornalismo desterrado, vai pelejar por nós e sustentar o Jornalismo?

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