sexta-feira, 28 de julho de 2023

“Práticas Socioespaciais urbanas: ambientes, paisagens e memórias soterradas” é tema de Ateliê nas Jornadas Antropológicas 2023 (PPGAS/UFSC)



A jornalista e doutoranda em Antropologia Social Priscila Oliveira dos Anjos e eu tivemos aprovada  proposta de Ateliê de Pesquisa, intitulada “Práticas Socioespaciais urbanas: ambientes, paisagens e memórias soterradas”, nas Jornadas Antropológicas 2023 (PPGAS/UFSC).

Os prazos já estão abertos para receber resumos de trabalho e de comunicação oral que tenham a ver com a temática, a seguir. Quem pesquisa o assunto está convidado a vir debater com a gente!

Para mais informações, siga a página no Instagram: 

@jornadasantropologicasufsc

Resumo: As literaturas antropológica, histórica e arquitetônica narram variados processos de transformação das paisagens urbanas de cidades brasileiras que ocorreram principalmente a partir do século XX. Com o advento da política higienista baseada em modelos europeus de fazer cidades, capitais como Rio de Janeiro (RJ), Recife (PE) e Florianópolis (SC) passaram por profundas reformas urbanas que deslocaram povos tradicionais, populações negras e pobres de localidades centrais e soterraram rios, mares e manguezais. Estes processos investiram numa profunda estruturação e "modernização" de infraestruturas sanitárias e de mobilidade, mas também produziram variadas dinâmicas urbanas não projetadas. Nos dias atuais, as intervenções infraestruturais surgem com a proposta de "revitalizar" praças, avenidas e centros históricos, assim como ampliar infraestruturas para então suprir as necessidades das grandes metrópoles. Estes novos empreendimentos, muitas vezes, revisitam aqueles espaços urbanos anteriormente transformados durante o século XX e também produzem efeitos e práticas não planejadas e novas sociabilidades. Convidamos os proponentes deste Ateliê de Pesquisa para partilhar relatos de campo e elaborações teóricas que analisem e problematizem sobre modos de construir e organizar cidades e projetar futuros, assim como as práticas socioespaciais que desdobram destes processos urbanos em suas variadas temporalidades. 

Link do modelo para submissão de resumo de trabalho em Ateliê de Pesquisa: https://docs.google.com/document/d/1YmpmdtAmaxNzkRnwStIzZe-6ZjKh161myFsPdcp_kVk/edit

Link do formulário para submissão de resumo de trabalho e comunicação oral em Ateliê de Pesquisa: https://docs.google.com/forms/d/e/1FAIpQLSdZd-AkTGLOM8sKOHKXBFuVz3JPg-0HBh_Fse8Zb917o_fbgA/viewform

quinta-feira, 20 de julho de 2023

Projeto mapeia experiências de Jornalismo Ambiental em Santa Catarina


Em seis de janeiro do ano passado, postei um recado no meu perfil do Facebook: “Estou em busca de subsídios para um artigo sobre a história do jornalismo ambiental em Santa Catarina. Jornalistas, veículos e experiências. Quem se lembrar de nomes nas três vertentes posta aqui!”. Não tive respostas. De lá para cá, venho pesquisando o assunto e apareceu a vontade de ampliar a possibilidade de respostas. Daí surgiu o projeto “Jornalismo Ambiental em Santa Catarina: teorias e práticas”, da equipe da Revista Pobres e Nojentas, que desenvolve também o “Projeto Repórteres SC”.

Nas pesquisas prévias, não encontramos editorias específicas sobre o tema, exceto a experiência do ANVerde, de A Notícia, mas muitos e muitas colegas, em suas trajetórias profissionais, escreveram e escrevem sobre temas e abordagens que caracterizam o chamado jornalismo ambiental. Já convidamos 11 colegas para participar do e-book (talvez a ser impresso!) contando sua experiência e estamos em busca de mais contatos.

O tema me interessa desde os anos 1990. Fiz especialização em Educação e Meio Ambiente na UDESC e o mestrado foi na Geografia da UFSC para pesquisar o discurso jornalístico do desenvolvimento sustentável, publicado em livro pela editora da universidade em 2006. No doutorado, pesquisei o espaço no jornalismo e, no pós-doutorado em Antropologia Social da UFSC, analisei 10 anos de cobertura do jornal Notícias do Dia sobre os conflitos de uso da rua no Centro de Florianópolis para a produção de dois artigos em andamento. Em 2007, como professora substituta no Curso de Jornalismo da UFSC, propus e ofertei a disciplina optativa “A relação sociedade-natureza no texto jornalístico”.

Atualmente integro o Núcleo de Ecojornalistas do Rio Grande do Sul (NEJ), o mais antigo do país, e o Grupo de Pesquisa em Jornalismo Ambiental (FABICO/UFRGS), coordenado pela professora Ilza Maria Tourinho Girardi, em que faço parte da equipe que produz análises semanais da cobertura ambiental via Observatório de Jornalismo Ambiental. Pelo NEJ, dentro do “Projeto Ambientalistas do Sul – Memória e História”, com as jornalistas Eloisa Loose e Vera Damian, entrevistamos ambientalistas que participaram da consolidação da temática na região Sul do Brasil. Fiz oito entrevistas com ambientalistas catarinenses e uma live sobre o papel do Movimento Ecológico Livre (MEL) na história de lutas em defesa do ambiente em Florianópolis, com cinco participações. Em 2020, organizei o livro “A rebelião do vivido no jornalismo independente de Florianópolis” (Pobres & Nojentas; Letra Editorial), que traz histórias estreitamente relacionadas com as lutas ambientais. Ainda em julho vamos lançar uma publicação sobre a atualidade da obra do jornalista Marcos Faerman, nosso mestre, que deixou um legado magistral de grandes reportagens sobre o tema.

A jornalista Elaine Tavares também há décadas cobre as lutas ambientais em Santa Catarina. O seu blog Palavras Insurgentes teve a primeira postagem em 4 de outubro de 2007. Ele foi uma atualização do blog Jornalismo Amoroso e de Libertação, criado em 2004, dentro do sítio Comunique-se. Quando o Comunique-se extinguiu os blogues, ela então migrou para o Blogspot, onde cunhou o Palavras Insurgentes, tendo como foco principal a luta dos trabalhadores e a discussão sobre a cidade. E, nesse tema, pautas como a devastação das florestas, o mau uso da água e os conflitos em torno do plano diretor foram sistematicamente narrados através de notícias e reportagens em texto e vídeo. Esses assuntos também apareceram na revista impressa Pobres & Nojentas, que circulou entre 2006 e 2013 com 30 edições e hoje continua em blog.

É hora de começar a organizar essas e outras histórias para que estudantes de jornalismo e profissionais em início de carreira as conheçam e deem continuidade e aprofundem o estudo e a prática do jornalismo ambiental em Santa Catarina, onde assunto não falta, ainda mais com a crise climática. Seguimos!


Pobres & Nojentas abre o projeto "Trajetórias e Histórias" com a jornalista Elaine Tavares

A equipe da Pobres & Nojentas traz o primeiro episódio do projeto “Trajetórias & Histórias”, que ouve pessoas cuja história de vida se entrelaça com as lutas populares em Santa Catarina. A primeira entrevistada é a jornalista Elaine Tavares, cujo fazer profissional é narrar as sucessivas rebeliões do vivido no cotidiano dos e das trabalhadoras. Desde pequena, nascida na fronteira, a guriazinha de Uruguaiana vive para continuamente fazer coisas.
Elaine já viveu em quatro estados, atuou em todas as áreas e funções pelas quais um jornalista pode passar (tevê, rádio, jornal, assessoria de imprensa, assessoria parlamentar, sindical, docência) tanto na mídia tradicional quanto no jornalismo independente. 
Ela trabalha no Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA/UFSC), tem um programa semanal na Rádio Comunitária Campeche, cuida do blog da Pobres & Nojentas e também do próprio blog, o Palavras Insurgentes, no qual a primeira postagem foi em outubro de 2007. Ali está a lista dos livros escritos por Elaine, nove, fora os capítulos publicados em coletâneas.
Ela já andou muito pelos pagos do mundo, afiou seus sortilégios nas terras da Andaluzia, da China, da Rússia, do Egito, da Pátria Grande Latino-Americana, mas ama Florianópolis do fundo do peito; saltita Centro afora feito uma lebre vendo as tendências com nossa querida amiga em comum Jussara Godoi e faz poema das veredas arenosas do Campeche, onde uma coruja dourada a aguarda todas as noites. 
Conheci Elaine em agosto de 2000, quando assumi como jornalista no Sindicato dos Trabalhadores da UFSC, o Sintufsc, em plena greve dos servidores técnico-administrativos. Ela foi coordenadora de Comunicação do Sindicato e por ela e pela também coordenadora e jornalista Raquel Moysés conheci a obra dos jornalistas Adelmo Genro Filho e Marcos Faerman, para mim desencadeadores de epifania jornalística. Já estou na segunda carteira profissional e posso afirmar que não houve lugar de trabalho mais importante na minha própria trajetória do que o Sintufsc. 
Particularmente, ao longo de 23 anos de convivência com a Elaine, a quem chamo de Cabecinha, a imagem que melhor define nossa caminhada é a cena final do filme "Anahy de las Misiones", de 1997. Ela é fronteiriça, eu sou serrana, e seguimos juntas em marcha rumo ao vasto e inevitável abismo, nas nossas carroças já rangentes, do embornal caindo projetos maravilhosamente fadados a prejuízos financeiros, mas movidas pelo contentamento e encantamento mútuo de fazer coisas.
Rumo ao nascente, Anahy, minha amiga, ao levante, sempre pra frente!!! Abra-se o maldito abismo!
EM TEMPO! Gravamos a entrevista na Praça XV, de frente para a Figueira. A Elaine publicou um novo livro chamado "Mentindo para a Figueira". Mas, na entrevista, só trouxe verdades!
Gravação e edição: Rubens Lopes de Souza
Confira no link! 

Etnografia e apuração: enlaces possíveis



A publicação "Etnografia na Antropologia e Apuração no Jornalismo: Tempos, Métodos e Experiências de Interpretação do Espaço Urbano" é o resultado do minicurso de mesmo nome oferecido pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFSC em novembro de 2022 pela professora Viviane Vedana, por mim e pela doutoranda e jornalista Priscila Oliveira dos Anjos.

O minicurso teve dois momentos: aulas teóricas e saída de campo na Avenida Hercílio Luz, no Centro de Florianópolis. Na sequência, cinco participantes toparam a proposta de escrever sobre a experiência e as reflexões dela decorrentes, compondo os quatro textos da publicação.
O ensaio de Celina Limeira Centena e Manu Rocha de Matos analisa a educação da atenção do antropólogo inserido em contextos urbanos, apontando a importância da caminhada à deriva como instrumento de pesquisa exploratória para todos aqueles que buscam construir conhecimento experimentando e praticando a cidade. Já Elizabeth Calderón aborda questões históricas relacionadas às mudanças na Avenida Hercílio Luz. O artigo de Guilherme Vasconcellos Leonel indica caminhos para uma etnografia da espera entre os indivíduos em situação de rua na avenida, e Warley Alvarenga apresenta um roteiro fotográfico de momentos e personagens que despertaram atenção na saída de campo.
São quatro belos exemplos de como a relação entre disciplinas enriquece a reflexão sobre o cotidiano e a pesquisa acadêmica.
A bela foto de capa é do estudante de Jornalismo Warley Alvarenga.
Boa leitura!

Livros que nos transportam


Nos anos 1970 e 80 chamava-se “primeiro grau” a progressão de primeira a oitava séries. O primeiro grau eu fiz de 1976 a 1983 na Escola Estadual Clemente Pinto, em Caxias do Sul. O prédio fica na Euclides da Cunha com a Sarmento Leite, a uma quadra da casa de minha família. Entrei na primeira série com seis anos. Era baixa, magra, míope, muito míope. A maioria das minhas roupas eram doadas por vizinhos e parentes. Usava uniforme azul com listras brancas, Conga e, no inverno, um casaco com pelos em volta das mangas e do colarinho que eu detestava. Mas havia um lugar onde a minha estranheza em relação a tudo e a todos desaparecia. Era na biblioteca da escola.

Bastava subir a escada ao lado da sala do SOE, o Serviço de Orientação Educacional, e o mundo era meu. As mesas da biblioteca eram baixas e redondas, os banquinhos também. Os livros, catalogados, pareciam me espiar, me desejar, aquietados nas prateleiras ou abertos, repletos de delícias. Objetos de vasto desejo como a Grande Enciclopédia Larousse ou a Barsa, a coleção da Revista Geográfica Universal – que minha mãe também adorava – a “Vaga-Lume”, a “Jovens do Mundo Todo”, Monteiro Lobato, as aventuras de Laura Ingalls Wilder, e tanto mais.
Não havia dia nem hora para retirá-los. A biblioteca me acolhia, me aquietava. E lá fora, no pátio, havia concreto, mas também árvores, cantos misteriosos, reservados somente ao zelador, perto de onde a gente podia sentar e ler.
Quando a biblioteca da escola não dava conta da pesquisa, os grupos de alunos combinavam horário para se encontrar na Biblioteca Municipal de Caxias. Era uma solenidade. Livros escolhidos, o empenho era coletivo para preencher o papel almaço a caneta com a Introdução, o Desenvolvimento, a Conclusão e a Bibliografia. Sobre a mesa espalhávamos canetas, canetinhas, réguas, no esforço de lá sair já com o trabalho pronto. Ainda tenho alguns guardados.
Numa tarde de junho passado, de dias tristonhos, visitei o Clemente. A biblioteca trocou de lugar com a sala de professores e agora está ao lado da entrada da escola. Espiei as prateleiras para ver se achava volumes da coleção “Jovens do Mundo Todo” e da “Série Vaga-Lume”, que lá pelos 11, 12 anos eu devorava. E estavam lá!
Fui de um canto a outro, nas salas do primeiro andar, no pátio – hoje coberto – e no salão, onde me lembro de encenar a peça “A bruxinha que era boa”, de Maria Clara Machado. Está lá o palco com cortinas de cor branca e magenta.
Saí do Clemente com as vistas pinicando a memória. E ali na esquina da Euclides com a Sarmento ainda me enlaço com as lembranças do casarão onde era o Armazém Onzi, uma cornucópia de doçuras devoradas, quando dava, longe dos olhos da mãe!
Os anos passam e me enche de doçura ver o Clemente em pé, porque volta e meia me lembro daquela biblioteca e abraço longamente aquela menininha.

Vídeo traz imagens da primeira ocupação organizada em Santa Catarina

A jornalista Elaine Tavares, do blog Revista Pobres & Nojentas, conseguiu recuperar imagens inéditas da mobilização que levou às primeiras ocupações organizadas em Santa Catarina. A filmagem foi provavelmente feita pelo fotógrafo Lúcio Giovanella, falecido em 2017. Nela aparecem pessoas fundamentais na luta por moradia em Santa Catarina, como a arquiteta Elisa Jorge, o arquiteto Loureci Ribeiro, o padre Vilson Groh, a irmã Ivone Perassa e o ex-vereador Lázaro Bregue Daniel. O vídeo está em https://www.youtube.com/watch?v=cZUlvp5lCpw

As ocupações dos anos 1990 são analisadas em uma série de 13 entrevistas do Projeto Escritos em Movimento, feitas pela jornalista Míriam Santini de Abreu e pelo jornalista Rubens Lopes e disponíveis em http://escritosemmovimento.blogspot.com

Nos anos 1980, a articulação nacional pela reforma urbana que o país vivia tomou corpo em Florianópolis. Em 14 de setembro de 1984, cerca de 40 pessoas acamparam na frente do Palácio do Governo de Santa Catarina, exigindo o direito à moradia, em uma articulação que pela primeira vez visibilizou os sem-teto como um movimento.

Na edição daquele dia, a notícia sobre a ocupação recebeu, no jornal O Estado, o título “Grupo de desempregados vai ao Palácio pedir auxílio”. O texto, na sua condição de registro inaugural de um movimento então recém-iniciado, realça aspectos daquele período histórico, como a condição de ex-lavradores dos ocupantes, e suas reivindicações, estreitamente relacionadas com a impossibilidade do viver cotidiano, com o qual o Estado, em relação àquelas pessoas, não queria se comprometer:

Desesperados e revoltados com sua situação, um grupo de 20 pessoas foi, ontem pela manhã, até o Palácio do Governo pedir ajuda ao Governador Esperidião Amin. São ex-lavradores vindos do interior do Estado que não têm casa, emprego e alimentos, e que no fim do seu êxodo não encontraram maneira de sobreviver na Capital. 

[...]

Não encontrando emprego na Capital (...), estas famílias levaram uma série de reivindicações ao Governador: um lugar para morar; um pouco de madeira para construir seus barracos (...); emprego na Comcap, Prefeitura ou DNER ou qualquer outro lugar; escola para crianças; assistência médica e alimentação para recomeçar a vida.

[...]

O Chefe da Casa Civil mostrou-se surpreso com a lista de pedidos afirmando que “o Governo não pode resolver seus problemas. Ajudamos vocês, mas amanhã vêm outras pessoas pedindo casa e comida. O que eu posso fazer é encaminhá-los à Secretaria de Desenvolvimento Social para serem cadastrados para que encontre uma solução. “Explicou ainda que a reivindicação é difícil de atender, pois afinal, é um exagero querer escola, assistência médica e casas. Nós não temos condições de dar nada disso. Vocês não deveria (sic) ter saído de onde moravam sem emprego certo e casas. Por isso acho que agora o problema é de vocês”. Nesse instante, Assis Filho [Chefe da Casa Civil] foi ajudado pelo Chefe da Casa Militar, Coronel Saulo Nunes de Souza que afirmou: “Vocês não estão sendo orientados pelos padres, então mandem a Igreja dividir suas terras. Vão pedir um lugar nas terras do Bispo de Chapecó, Dom José Gomes porque o Estado não tem. 

[...] (GRUPO... O Estado, 14 set. 1983, p. 2). [Uso das aspas como no original]

Seis anos depois, em julho de 1990, o movimento coordenou a primeira ocupação organizada de terras na capital catarinense, em um terreno público às margens da Via Expressa – ligação rodoviária entre a BR-101 e a Ilha – onde hoje está o bairro Monte Cristo, na porção continental, que foi chamada de Ocupação Novo Horizonte. Segundo o professor Francisco Canella, os conflitos, que inicialmente aconteciam de forma mais isolada, foram adquirindo maior organicidade quando as lideranças de diferentes  localidades  passaram  a  se organizar:

As ações passaram a ser mais e mais conjugadas ao esforço de atores ligados à Igreja Católica (pastorais e CEBs) de organizar esses moradores pobres. Esses atores da Igreja, que possuíam grande inserção junto aos moradores dos bairros onde se desenrolavam os conflitos, funcionavam efetivamente como mediadores, pois faziam a ligação desses moradores com outros setores da sociedade (tais como universidade, advogados, militantes de outros movimentos, sindicatos) que através da imprensa, divulgavam sua causa e pressionavam a prefeitura. Com forte influência do discurso da Teologia da Libertação, focado na justiça social, o movimento assumiu um caráter politicamente progressista e, em pouco tempo, passou a protagonizar ações de enfrentamento com a prefeitura e outros órgãos públicos. Numa postura mais agressiva, superando a mera resistência às ações de despejo, o grupo que se organizava em torno do CAPROM [Centro de Apoio e Promoção do Migrante] fez a opção pelas ocupações organizadas (CANELLA, 2015, p. 223-4).

Apresentou-se então, explica o professor Lino Peres, naquele contexto/período, um processo de ocupação territorial para garantir de forma imediata a terra e as condições mínimas de habitabilidade diante da impossibilidade de se ter acesso, pelas vias formais, à moradia. No primeiro momento, a ocupação se dá de forma irregular, pela auto-construção da moradia, em que o imediato e urgente são a regularização da terra e o acesso ao trabalho e, em segundo lugar, aos serviços urbanos mais cotidianos. No segundo momento, quando ocorre a regularização da terra ou desaparece o perigo imediato de despejo, a infraestrutura e os serviços são vistos e tratados de forma diferente, já como processos consolidados, assim como a moradia:

A moradia começa a ser entendida como pertencimento, lugar de identificação psicossocial, onde a necessidade de melhoria definitiva das condições de habitabilidade cobra sentido ambiental, estético e construtivo, claro que regidos pela disponibilidade de recursos; a partir daí, são progressivos (PERES, 1994, p. 622). 

No terceiro momento, a preocupação com a melhoria urbana e da moradia ocupa um lugar central; no quarto, o assentamento auto-construído tende a ser incorporadao à malha urbana e pouco a pouco a área em questão já não é mais considerada marginal pelo Estado e as elites e passa a integrar a cidade. Esse é o caso das comunidades do Monte Cristo, bairro onde ocorreu a ocupação mostrada no vídeo.

Aquela ocupação histórica de 1990 teve, além da cobertura do jornalismo tradicional, também a de um veículo importante naquele período, o Jornal das Comunidades,, que enfatizou, na chamada de capa, sob a manchete “OCUPAÇÃO”, a ideia de resistência diante de uma vida cotidiana onde o uso pleno da cidade é impedido:

Cem famílias sem terra, sem teto e sem medo escreveram um pedaço de História, com as próprias mãos, na madrugada fria de 28 para 29 de julho. Ocuparam um terreno baldio da Cohab, no Pasto do Gado às margens da Via Expressa, em Florianópolis. Foi a primeira ocupação organizada de áreas urbanas de Santa Catarina. E eles querem fincar pé naquela terra. 

– Somos nós que construímos esta cidade, mas até agora não nos deram o direito de morar dignamente. Por isso, decidimos: OCUPAR, RESISTIR E CONSTRUIR.

A ocupação é a última saída para os 40 mil sem-teto da Capital, que vivem no sufoco do aluguel, no aperto dos cortiços e sob a ameaça dos despejos (OCUPAÇÃO, jul./ago. 1990, p. 1).

Do Jornal das Comunidades, publicação da então Coordenação da Comissão de Associações de Moradores de Florianópolis, há oito edições impressas entre maio de 1989 e dezembro de 1990. A tiragem era de 3 mil exemplares distribuídos em comunidades do Maciço do Morro da Cruz e em bairros onde havia ocupações de famílias de baixa renda.

Nos anos seguintes, novas ocupações ocorreram, processo que perdeu força a partir de 1993, em função de divisões internas do movimento e das expectativas criadas com a eleição e gestão da Frente Popular (PPS, PT, PCdoB, PCB, PSB, PDT, PSDB e PV) em Florianópolis, entre 1993 a 1996. 

Nas duas décadas seguintes, o crescimento populacional de Florianópolis foi acompanhado também pela agudização do chamado déficit habitacional,. É neste contexto que 2012 marca o que o professor Francisco Canella define como o segundo ciclo de ocupações organizadas na área conurbada de Florianópolis (com São José, Biguaçu e Palhoça), com a 1) Ocupação Contestado, no município de São José, em novembro de 2012; 2) Ocupação Palmares, na Serrinha, localizada no Maciço do Morro da Cruz, em Florianópolis, em 2013; 3) Ocupação Amarildo de Souza, no bairro da Vargem Pequena, Norte da Ilha de Santa Catarina, a maior delas, em 2013. 

Atualmente, há uma série de outras ocupações na região, com milhares de pessoas na luta por moradia em uma realidade na qual os imóveis para comprar ou alugar estão entre os mais caros do país. Por isso a importância do vídeo recuperado e divulgado pela jornalista Elaine Tavares, expressando um momento singular de luta coletiva em Florianópolis que conquistou a moradia.

Fontes:

CANELLA, Francisco.  Cidade turística, cidade de migrantes: movimento dos sem-teto e representações sociais em Florianópolis (1989 - 2015). Revista Libertas On-Line (Revista da Faculdade de Serviço Social da Universidade de Juiz de Fora - MG). v. 15, n. 2, 2015. Disponível em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/libertas/article/view/18457 Acesso em: 23 jun. 2023.

CANELLA, Francisco. O movimento dos sem-teto em Florianópolis: mudanças no perfil dos atores e práticas (1990 – 2013). Revista de Ciências Humanas, Florianópolis, v. 50, n. 2, p. 268-288, dez. 2016. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/revistacfh/article/view/2178-4582.2016v50n2p268/33925. Acesso em: 23 jun. 2023. 

GRUPO DE DESEMPREGADOS VAI AO PALÁCIO PEDIR AUXÍLIO. O Estado. Florianópolis (SC), 14 set. 1984, p. 2.

OCUPAÇÃO. Jornal das Comunidades. Florianópolis (SC), jul./ago. 1990, nº 6, p. 1.

PERES, Lino Fernando Bragança. Crisis de un patron de desarrollo territorial y su impacto urbano-habitacional en Brasil (1964-1992): la punta del iceberg: los “sin-techo” en la region de Florianópolis, SC. Tesis apresentada à Facultad de Arquitectura  da Universidad Nacional Autonoma de Mexico. Mexico, 1994.

PERES, Lino Fernando Bragança. Da crise do padrão habitacional de grande escala à expansão das periferias urbanas: os sem-teto como a ponta do iceberg do processo de segregação e exclusão sócio-espacial. In: Encontro Nacional da Anpur, 6, 1995, Brasília. Anais... Brasília: ANPUR, 1995. p. 106-125. Disponível em: http://anpur.org.br/project/anais-do-vi-encontro/. Acesso em: 23 jun. 2023.

Engordamento de praia: a miséria da política no jornalismo catarinense

Dois colunistas catarinenses tiraram o dia 8 de fevereiro para atacar o professor do Departamento de Botânica da UFSC Paulo Horta. Motivo: u...