segunda-feira, 13 de outubro de 2025

Jornalismo Ambiental: totalizar os resíduos

 

Ato no Sul da Ilha de Santa Catarina contra a verticalização - Milton Ostetto



A realização no Brasil da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, a COP30, no mês de novembro em Belém (PA), não pegou desprevenido o jornalismo especializado na área no país. São décadas de acúmulo teórico, criação de veículos especializados, debates, articulação em rede, produção de importantes coberturas jornalísticas. Pesquisadora do tema desde o final dos anos 1990, vim alinhavando impressões nos últimos anos e concluí que ainda há coisas a dizer sobre o chamado jornalismo ambiental.

Do ponto de vista do jornalismo em geral, este artigo toma o papel da imprensa tradicional/hegemônica como o de manutenção da ordem social e, em contrapartida, o da imprensa independente/alternativa/contra-hegemônica como o de crítica a esta ordem para a construção de outro modo de organização social. O fato é que as formas de nomear os novos arranjos ou experiências de jornalismo são inúmeras e as pesquisas mostram que a imprensa independente/alternativa/contra-hegemônica pode, muitas vezes, reproduzir rotinas de trabalho e de fazer jornalísticos semelhantes às da imprensa tradicional/hegemônica.

Mas a imprensa independente/alternativa/contra-hegemônica tem mais potencial do que a tradicional/hegemônica para, pelo jornalismo, produzir conhecimento capaz de elucidar criticamente a relação entre sociedade e natureza no texto jornalístico, noção que costumo adotar em minhas reflexões sobre o chamado jornalismo ambiental. É nesta perspectiva que o artigo adota, doravante, a expressão jornalismo/imprensa independente.

As considerações a seguir são voltadas para a imprensa independente especializada no jornalismo ambiental, não cabendo para o jornalismo informativo e opinativo sobre temas ambientais circulando na imprensa tradicional (com mais ou menos elementos característicos do jornalismo ambiental) por esta mover-se pela lógica da notícia como valor de troca, como mercadoria.

O conjunto de profissionais que se identificam com o jornalismo ambiental atua na imprensa tradicional, independente, em assessoria de organizações ambientais,  agências de notícias, universidades, institutos de pesquisa, freelancers. Toma-se como pressuposto que esses profissionais corroboram, no geral, os princípios do jornalismo ambiental geralmente adotados em pesquisas acadêmicas no país:

 

Assim, para que uma reportagem seja considerada Jornalismo Ambiental deve apresentar algumas das seguintes características: mostrar uma visão sistêmica dos fatos; dar conta da complexidade dos eventos ambientais; contemplar a diversidade dos saberes e não ser refém de fontes oficiais; defender a biodiversidade e a vida em sua plenitude, o que significa deixar de ser imparcial; assumir seu papel educativo, cidadão e transformador. Tais aspectos também podem ser contemplados ao longo de uma série de reportagens (GIRARDI, p. 19-20)

 

Publicação do ICFJ (International Center for Journalists) sobre o jornalismo ambiental na América Latina e no Caribe destaca as seguintes características:

 

Características del periodismo ambiental.

• Es periodismo de investigación.

• Utiliza la ciencia para explicar problemáticas y fenómenos.

• Fomenta la cultura ecológica.

• Alerta oportunamente a la sociedad sobre las consecuencias de daños ecológicos.

• Documenta iniciativas y proyectos sustentables/ecológicos.

• Tiene riqueza de fuentes de información.

• Señala alternativas y posibles soluciones de un conflito ecológico.

• Da voz a la naturaleza, los animales, el paisaje.

• Utiliza un lenguaje creativo, informa sin ser aburrido (ICFJ, 2018, p. 6).

 

Minhas pesquisas se movem pela teoria marxista de jornalismo de Adelmo Genro Filho (1989), que compreende o conhecimento como práxis – uma atividade de mútua produção entre sujeito e objeto – e a realidade social como totalidade. Para construir sua teoria do jornalismo, Genro Filho se alicerça nas categorias filosóficas do singular, particular e universal erigidas por G. Hegel e usadas na teoria de G. Lukács sobre a arte. Sustentando-se nesses autores, Genro Filho acentua que existe uma relação dialética entre as três categorias (singular, particular e universal). Cada um dos conceitos expressa as diferentes dimensões que compõem a realidade e, ao mesmo tempo, compreende em si as demais.

O aparecimento histórico do jornalismo, para o autor, “[...] implica uma modalidade de conhecimento social que, a partir de um movimento lógico oposto ao movimento que anima a ciência, constrói-se deliberada e conscientemente na direção do singular” (GENRO FILHO, 1989, p. 160). Em termos mais concretos, o aspecto central do jornalismo como gênero de conhecimento é “(...) a apropriação do real pela via da singularidade, ou seja, pela reconstituição da integridade de sua dimensão fenomênica” (GENRO FILHO, 1989, p. 58, com grifo no original).

Um aspecto fundamental da teoria de Genro Filho é a relação que ela tem com a emergência do novo e a possibilidade que o jornalismo tem de apreendê-lo na linguagem articulando fatos singulares (únicos, irrepetíveis) às dimensões filosóficas do particular e do universal, aspirando à totalidade. Na discussão sobre os fenômenos e acontecimentos que povoam o cotidiano, o autor ressalta que ambos “(...) precisam ser percebidos como processos incompletos que se articulam e se superpõem para que possamos manter uma determinada ‘abertura de sentido’ em relação a sua significação” (GENRO FILHO, 1989, p. 36). No jornalismo, isso implica perceber o novo na vida social e estar atento à sua irrupção na vida cotidiana.

Por isso, tenho trabalhado, como já dito, a relação entre sociedade e natureza no texto jornalístico em sua totalidade, no entendimento de que tal relação deve ser intrínseca ao jornalismo de crítica da vida cotidiana e a serviço da desalienação e da emancipação humana, independentemente de editorias e especializações.

Mas, à medida que se consolida como especialização, o jornalismo ambiental se expressa no fazer jornalístico na imprensa (tradicional e independente) e no fazer acadêmico (cursos, disciplinas, pesquisas, projetos, editais, livros, eventos), uma alimentando-se da outra. A observação e análise das duas vertentes, no campo do jornalismo ambiental brasileiro na imprensa independente, permitem as observações a seguir:

 

1 – Perspectiva anticapitalista

 

O jornalismo ambiental brasileiro precisa se mover na perspectiva anticapitalista como horizonte de atuação. Ainda que parte dos jornalistas ambientais também se assumam como militantes ambientalistas, a cobertura jornalística no geral caminha mais pelo ambientalismo crítico do que pelo ecossocialismo. Tomando a imprensa como instrumento de um projeto político, a falta também deriva da realidade do campo político-partidário brasileiro, em que a perspectiva anticapitalista é minoritária e, quando explicitada, necessariamente não tem a relação entre sociedade e natureza como pauta prioritária; se tem, é uma pauta muitas vezes alinhada com soluções capitalistas, como a aposta no mercado de carbono, ou afirmada em discursos genéricos como o da sustentabilidade.

Sem essa perspectiva, contra o quê e em que termos luta e se posiciona o jornalismo ambiental brasileiro? O impasse pode ser melhor compreendido no debate, por exemplo, sobre a transição energética. Essa transição, afirma Barreto (2018; 2024), é impossível nos marcos da sociedade capitalista, que produz necessariamente a tragédia ambiental contemporânea.

A cobertura jornalística das mudanças climáticas e desastres climáticos, atualmente já constituindo mais um nicho acadêmico e de atuação profissional, o chamado jornalismo climático, tem estreita relação com a transição energética, e é certo que pautas com e sem perspectiva anticapitalista levam a rumos diferentes de abordagens e fontes. Há então que, no jornalismo ambiental, desmontar a naturalização do capital e seus limites de estratégias para redução de impactos e de adaptação às mudanças climáticas e priorizar abordagens e fontes na perspectiva apontada pelo autor, de “radical subversão da lógica do capital e de todo o ordenamento social que a ela corresponde” (BARRETO, 2018, p. 20).  Barreto assinala que o projeto de uma nova sociedade deve vir acompanhado de uma reconfiguração maciça da estrutura produtiva e dos hábitos de consumo. definida e hierarquizada segundo critérios coletivamente estabelecidos (2018, p. 213), sendo esses, portanto, dois potenciais caminhos para a produção de pautas e coberturas jornalísticas.

 

2 – Jornalismo de classe

           

A perspectiva anticapitalista deve estar amarrada a outra, a de classe, na senda da crítica de Guimarães (2015). A partir da perspectiva gramsciana, a autora critica o jornalismo hegemônico e aponta caminhos para o contra-hegemônico, erodindo as bases de sustentação do moderno jornalismo para mostrar como o jornalismo contra-hegemônico pode constituir uma prática efetivamente a serviço da emancipação humana. Para o enfrentamento da hegemonia no campo da imprensa, Guimarães sugere ao jornalismo que se pretende contra-hegemônico um deslocamento necessário na função do jornalismo: 1) do esclarecimento para a construção da consciência, e 2) da mudança do sujeito para quem essa prática deve se voltar, movendo-se do indivíduo para a classe (2015, p. 231).

A função contra-hegemônica possível de ser exercida por uma imprensa que se quer alternativa é o esforço de fazer aflorarem as contradições, desvelar a ideologia, expor aquilo que, de outro lado, no contexto do capitalismo, encontra-se nublado e invertido. É um movimento de dar unidade e coerência ao que, no jornalismo hegemônico, aparece fragmentado e caótico, enfrentando assim a heterogeneidade própria do cotidiano. Portanto, não basta a denúncia da manipulação promovida pela comunicação hegemônica. Há que desvendá-la por dentro da lógica de sua narrativa.

O jornalismo contra-hegemônico tem então a função primordial de pensar a realidade em sua totalidade, no esforço “(...) de desideologização, de desvelamento, daquilo que, de outro lado, no contexto do capitalismo, encontra-se nublado e invertido” (GUIMARÃES, 2015, p. 23, com grifos no original). A ideologia, afirma Silva, “(...) é, fundamental e essencialmente, um modo de ver a realidade social que não contempla senão a aparência dos processos, seu modo de manifestar-se exteriormente, e oculta – sabendo-o ou não – o caráter profundo, estrutural do processo” (SILVA, 1971, p. 64).

É necessário, portanto, que esse caráter estrutural do processo, no caso da luta ambiental, seja continuamente enunciado pelo jornalismo ambiental, sem filtros, com a maior precisão e rigor possíveis, no caminho do papel que Barreto atribui aos ecossocialistas (BARRETO, 2025, p. 114).

É um jornalismo que deve caminhar na concepção filosófica de Enrique Dussel, criador da Filosofia da Libertação, que inspirou a proposta de jornalismo libertador, conceito apresentado por Tavares (2004), pelo qual o foco do jornalismo volta-se para a comunidade das vítimas do sistema, tal qual propõe Dussel. A narrativa deve ser cristalizada no singular, evocando o universal, mas priorizando dar visibilidade à vida do oprimido, saindo assim de uma forma de praticar jornalismo que se alimenta apenas ou prioritariamente de fontes oficiais. O jornalismo, afirma Tavares (2004, p. 24), é serviço público, e só podem existir dois tipos de jornalismo: o que serve a uma minoria dominante (moral de dominação) e o que serve aos oprimidos, maioria da população (ética da libertação).

 

3 – Projeto cooperativo nacional e internacional

 

Com o papel estratégico do Brasil no cenário latino-americano e caribenho, cabe ao jornalismo ambiental brasileiro avançar na construção de um projeto cooperativo nacional e internacional. Pautas comuns não faltam: a Amazônia se estende por nove países; o Aquífero Guarani, por quatro; uso de agrotóxicos; poluição do ar e da água; devastação de florestas. De tão ou maior importância seria mapear e visibilizar os movimentos de resistência/insurgência no continente.

A imprensa tradicional/hegemônica faz pouco e mal esta cobertura, além de criminalizar a luta social, como é caso da luta por terra. Para além da discussão de nichos conceituais (jornalismo ambiental, jornalismo climático, comunicação ecoterritorial), muitas vezes de definição imprecisa e cabível a outras especializações jornalísticas, o caminho é consolidar parcerias que potencializem a difusão de coberturas jornalísticas importantes.

Na disputa global por recursos de toda ordem, o jornalismo contra-hegemônico ganha ao se mover por um pensamento estratégico firmado no princípio da soberania e em uma visão de futuro do longo prazo, direção apontada por Bruckmann (2012, p. 23).

Isso coloca em centralidade a terra, em sua fecundidade natural, gerando materialmente a riqueza fundamental, o "valor de uso" primigênio, primeiro, como diz Dussel. Sem as chamadas coisas "naturais", o homem não poderia realizar nenhum trabalho. Finalmente, todo trabalho é transformação (mudar a forma) desta matéria parida pela terra (DUSSEL, 1986, p. 215).


4 – Ensino do saber que importa

 

Dois fatos se entrecruzam no debate sobre o ensino do jornalismo. O primeiro é que, com o fim da exigência do diploma para o exercício profissional, pessoas com formação em diferentes áreas estão produzindo notícias e reportagens (jornalismo informativo). Antes do fim do diploma, a situação era mais comum na produção de artigos e colunas (jornalismo opinativo). Olhares de diferentes disciplinas são importantes, mas há o risco de a produção jornalística informativa, com toda a sua riqueza conceitual e técnica (entrevista, narração, descrição) perder espaço para a produção opinativa, na qual predomina a análise e não o corpo a corpo com a vida, título de um clássico ensaio de João Antônio sobre o jornalismo.

O segundo fato é que mesmo a graduação em jornalismo não garante a formação necessária para compreender e narrar a problemática relação entre sociedade e natureza, e a crítica não cabe apenas ao jornalismo. A clássica obra de Álvaro Vieira Pinto “A questão da universidade” destaca o papel da universidade como porta de entrada na compreensão do processo geral da nossa realidade. Mas tanto na década de 1960, quando o livro foi escrito, quanto na atualidade, “... a universidade é uma peça do dispositivo geral de domínio pelo qual a classe dominante exerce o controle social, particularmente no terreno ideológico, sobre a totalidade do país” (1994, p. 19). 

O autor afirma que a classe dominante solicita da universidade acima de tudo ideias que justifiquem seu poderio (p. 25), funcionando como anteparo destinado a ocultar a realidade do país à sua própria consciência (p. 35), um “templo” que não sabe o saber que importa (p. 43).

Reflito sobre a obra de Vieira Pinto à luz da crítica de Barreto à economia das mudanças climáticas, que traz considerações importantes para refletir sobre o ensino e a prática do jornalismo na relação entre sociedade e natureza. Segundo o autor, as respostas do pensamento econômico e das políticas climáticas são “extensamente mapeadas, não por encontrarmos nelas reflexões fecundas, mas por encontrarmos ali as formas dominantes nas quais a humanidade vem se mobilizando diante do desafio” (BARRETO, 2018, p. 19).

As formas dominantes vêm na esteira da naturalização do capital e cabe, a quem ensina jornalismo, desnaturalizar, elucidar essa lógica em qualquer disciplina. Mas o ensino do jornalismo, também vitimado pelo parcelamento da ciência e na linha da crítica de Vieira Pinto, de modo geral não está comprometido com uma educação totalizante e com o saber que importa. O ensino das técnicas predomina, assim como as exigências, sempre voláteis, do mercado. O Ministério da Educação (MEC) divulgou em setembro de 2025 que o número de alunos em graduação à distância passou, pela primeira vez, o de cursos presenciais. Este é mais um elemento a ser levado em conta na reflexão sobre o distanciamento da universidade da vida social e, cada vez mais, da vida do estudante em sua completude, inclusive física.

Bakhtin (1990), ao analisar a obra do escritor F. Rabelais, diz que um dos motivos de sua força estava no fato de o autor sair das vizinhanças habituais e construir vizinhanças inesperadas. Ao ensino do jornalismo cabe fazer o mesmo, sair das vizinhanças habituais e procurar vizinhanças inesperadas, ou seja, contribuições de outras áreas de conhecimento. O parcelamento das ciências fragmenta o cotidiano, impedindo que ele seja compreendido em sua totalidade. O ensino do jornalismo, ao abrir mão de seu potencial crítico, faz o mesmo.

 

5– O papel do cotidiano

 

O jornalismo ambiental cerca para si um conjunto de temas, mas rotular pode fazer crescer o risco de deixar abordagens importantes de fora. Em 2021, um grupo de cientistas publicou artigo no International Journal of Disaster Risk Reduction (LIZARRALDE et al, 2021) explorando como cidadãos e líderes explicaram os desastres climáticos na América Latina e no Caribe e se os relacionaram às mudanças climáticas. Eles encontraram cinco narrativas diferentes, incluindo uma em que os cidadãos acreditam que as mudanças climáticas são uma "condição que distrai autoridades e pessoas de outros desafios diários imediatos, como violência, criminalidade, desemprego, insegurança alimentar e falta de infraestrutura". 

Em um dos lugares pesquisados, Salgar (Colômbia), uma cidade nas montanhas da região de Antioquia, moradores que vivem em ambientes informais disseram estar mais preocupados com as lutas diárias, como desemprego, violência, criminalidade e insegurança alimentar, do que com os efeitos das mudanças climáticas. Muitos deles argumentaram que os efeitos climáticos tendem a ocorrer apenas em países ricos. No entanto, eles se mostraram preocupados com os problemas ambientais locais. É o cotidiano se insurgindo contra as limitações da pauta ambiental.

No senso comum, cotidiano é o que ocorre todos os dias, o banal, o corriqueiro, o repetitivo. Mas nele também nasce a ruptura, a possibilidade de transformação social. A tensão constante entre repetição/transformação faz do cotidiano uma categoria de longa tradição em diferentes correntes sociológicas. Em minha tese de doutorado, desenvolvo a tradição marxista e mostro como o jornalismo de crítica do cotidiano elucida a experiência vivida no espaço, sendo este o caminho para ampliar a cobertura dos temas da chamada questão (e sua pauta) ambiental (ABREU, 2019).

 

6-Jornalismo ambiental: totalizar os resíduos

 

Para dar um rumo apropriado ao que foi desenvolvido até agora, a síntese é esta: o papel do jornalismo ambiental é totalizar os resíduos, concepção que trago da obra de H, Lefebvre. Ele dá o nome de poiésis a toda a atividade humana que “(...) se apropria da ‘natureza’ (physis) em torno do ser humano e nele (sua própria natureza: sentidos, sensibilidade e sensorialidade, necessidades e desejos, etc.)” (LEFEBVRE, 1967, p. 64, com grifos no original). É, portanto, criadora de obras: “Compreende fundações, decisões de consequências ilimitadas, embora às vezes despercebidas durante longos períodos” (LEFEBVRE, 1967, p. 64-5).

Para Lefebvre, a poiésis parte do residual, do que ele denomina resíduo. O autor afirma que cada atividade que se autonomiza tende a constituir-se em sistema, em “mundo”, o qual acaba por expulsar, indicar, o resíduo. O resíduo é o que escapa, o que resiste, e de onde pode partir uma resistência efetiva e prática (LEFEBVRE, 1967, p. 68 e 373). A religião, como poder, constitui como resíduo a vitalidade (natural, carnal); a filosofia constitui como resíduo o não-filosófico (o cotidiano, o lúdico). E assim continua: o político, a vida privada; a burocracia, o individual; a significação (signo, significante, significado), o insignificante. Para Lefebvre, é preciso “(...) detectar os resíduos – neles apostar – mostrar neles a preciosa essência – reuni-los – organizar suas revoltas e totalizá-los. Cada resíduo é um irredutível a apreender novamente” (LEFEBVRE, 1967, p. 375-6).

À poiésis cabe então reunir os resíduos depositados pelos sistemas que tentam acuá-los e exterminá-los: “Promover um resíduo, mostrar sua essência (e seu caráter essencial), contra o poder que o oprime e o patenteia tentando oprimi-lo, é uma revolta. Reunir os resíduos é um pensamento revolucionário, um pensamento-ação” (LEFEBVRE, 1967, p. 376). Apostar neles “(...) por um ato poiético inaugural, reuni-los em seguida na práxis, erguê-los contra os sistemas e as formas adquiridas, tirar deles novas formas, é o grande desafio” (LEFEBVRE, 1967, p. 378). Essa aposta comporta, diz o autor, a ideia de que nada é eterno nem completamente durável:

 

Não apenas os resíduos são o mais precioso, mas roem, destroem por dentro, fazem explodir os sistemas que querem absorvê-los. Nesse sentido, a poiésis, que deles se apodera, deve revelar-se criadora de objetos, de atos e, mais geralmente, de situações (LEFEBVRE, 1967, p. 377). [Com grifo no original]

 

 

Uma revolução, dizia Lefebvre, para realizar todo seu potencial, precisa gerar efeitos na vida cotidiana, na linguagem e no espaço. Para isso, ele reclamava uma invenção, uma poiésis, uma fala criadora, que limitasse as “pretensões ilimitadas da mercadoria” e do seu mundo (o dinheiro) e também não as substituísse “(...) por sujeições ‘superiores’ e pelos valores da moral e da política” (LEFEBVRE, 1966, p. 337).

O jornalismo que se propõe a fazer a cobertura crítica da relação sociedade-natureza deve estar então a serviço do conjunto de resíduos, tomados como insignificantes pela filosofia, como assinala Lefebvre, como conjunto do pseudo-nada, do Não-Valor, daquilo que não tem mais valor: “(...) o quotidiano, a palavra incerta, a situação equívoca, a ambiguidade” (LEFEBVRE, 1967, p. 377).

Há, na vida cotidiana, um conjunto de resíduos continuamente acossados pelos sistemas de poder por neles germinarem alternativas que confrontam esses sistemas. Na sociedade atual, o cotidiano é cuidadosamente programado e assim se mantém por coações e opressões de todo o tipo, e as insurgências, o não programado, o impossível de controlar, são duramente combatidos. Nessa perspectiva, reunir os resíduos e neles apostar é um pensamento revolucionário, um pensamento-ação, como diz Lefebvre, e nisso o jornalismo tem um papel fundamental.

O jornalismo ambiental precisa estar a serviço da elevação da consciência, ser “uma forma de fustigar a brasa insurrecional”, como afirma Barreto ao se referir aos esforços necessários por parte dos ecossocialistas, que devem investir em formação, denúncia e agitação, radicalizando as pessoas em luta: “Fazê-lo de maneira intencional e metódica, não de maneira entregue ao acaso ou à esperança de uma elevação geral espontânea de consciência da classe”. A formulação é perfeita também para o jornalismo que se põe a serviço da emancipação humana.

 

Referências

ABREU, Míriam Santini de (2019). Espaço e cotidiano no jornalismo: crítica da cobertura da imprensa sobre ocupações urbanas em Florianópolis. (Tese de Doutorado). Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis (SC). Disponível em: https://tede.ufsc.br/teses/PJOR0134-T.pdf. Acesso em: 15 set. 2025.

ANTÔNIO, João. Malhação do Judas carioca. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.

BAKHTIN, Mikhail. Formas de tempo e de cronotopo no romance (Ensaios de poética histórica). In: BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética (a teoria do romance). São Paulo: Unesp; Hucitec, 1990, 2ª ed., pags. 211 a 362

BARRETO, Eduardo Sá. O capital na estufa: para a crítica da economia das mudanças climáticas. Rio de Janeiro: Consequência, 2018.

BARRETO, Eduardo Sá. Pequeno guia para a crítica ecossocialista do capitalismo. Marília (SP); Lutas Anticapital, 2024.

BRUCKMANN, Mônica. Recursos naturales y la geopolítica de la integración sudamericana. Lima (Peru): Instituto de Investigaciones Sociales Perumundo; Fondo Editorial J.C. Mariátegui, 2012.

DUSSEL, Enrique. Ética comunitária. Petrópolis: Vozes, 1986.

Genro Filho, Adelmo. O segredo da pirâmide: para uma teoria marxista do jornalismo, Porto Alegre: Tchê, 1989.

GIRARDI. Ilza Maria Tourinho. In: GIRARDI, Ilza Maria Tourinho et al. Jornalismo ambiental: teoria e prática. Porto Alegre: Metamorfose, 2018. Disponível em: https://jornalismoemeioambiente.com/wp-content/uploads/2018/09/jornalismo-ambiental-teoria-e-prc3a1tica2.pdf. Acesso em: 24 ago. 2025. 

ICFJ. Periodismo Ambiental em América Latina y el Caribe: Botiquín de Superación. 2019. 

GUIMARÃES, Cátia Corrêa. Jornalismo e luta de classes: desvendando a ideologia do modelo informativo na busca da contra-hegemonia. Tese apresentada à Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2015. 

LEFEBVRE, Henri. A linguagem e a sociedade. Lisboa: Ulisseia, 1966. 

LEFEBVRE, Henri. Metafilosofia: prolegômenos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. 

LIZARRALDE, Gonzalo et al.  Does climate change cause disasters? How citizens, academics, and leaders explain climate-related risk and disasters in Latin America and the Caribbean. International Journal of Disaster Risk Reduction. Volume 58, maio 2021. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S2212420921001394. Acesso em: 10 set. 2025. 

NOROEFÉ, Vitor Hugo. Geógrafa critica privilégios da discussão ambiental. Brasil de Fato. Disponível em: https://sosriosdobrasil.blogspot.com/2014/06/criticas-serias-da-geografa-maria.html. Acesso em: 10 set. 2025. 

PINTO, Álvaro Vieira. A questão da universidade. São Paulo: Cortez, 1994. 

SILVA, Ludovico. Teoria y practica de la ideologia. México: Editorial Nuestro Tiempo. 1971. 

TAVARES, Elaine. Jornalismo nas margens: uma reflexão sobre a comunicação em comunidades empobrecidas. Florianópolis: Companhia dos Loucos, 2004.

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