terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

Engordamento de praia: a miséria da política no jornalismo catarinense


Dois colunistas catarinenses tiraram o dia 8 de fevereiro para atacar o professor do Departamento de Botânica da UFSC Paulo Horta. Motivo: um vídeo publicado por Horta em rede social posicionando-se de forma crítica ao engordamento da praia de Jurerê, no Norte da Ilha de Santa Catarina. O pesquisador alerta para os impactos ambientais e a falta de debate sobre a obra com a sociedade. O fato revela a miséria da política e também do jornalismo catarinense.

A coluna de Marcos Schettini considera o alargamento de praias um favor ao turismo e abre com 13 linhas de elogios a Vinicius Lummertz e ao prefeito de Florianópolis, Topázio Neto. Lummertz exerceu cargos no setor turístico e em seu site nomeia-se “uma das maiores autoridades em Turismo do país”.

No restante da coluna, Schettini, em 12 notas, chama Horta de “alucinado”, “falastrão”, “matraca”, “tagarela” e “analfabeto”. Para Schettini, o doutor em Ciências Biológicas pela USP e pós-doutor em Ecologia Marinha pela Plymouth University, no Reino Unido, e pelo Centro de Ciências Marinhas da Universidade do Algarve, em Portugal, “não tem ideia do que diz”, “cria discurso tolo, age como um ermitão boca-aberta, fora da realidade”, e, “se fumou algo, deve parar”. A coleção de injúrias não é interrompida por qualquer informação relevante sobre a obra de engordamento da praia. 

Já Marcelo Lula, em sua coluna, critica Horta sem usar impropérios gratuitos, mas faz uma afirmação taxativa: “Paulo Horta é conhecido em Florianópolis por ser contra qualquer obra que traga desenvolvimento”. 

Desde o início dos anos 1980, quem é crítico ao modelo de desenvolvimento predatório de Florianópolis é chamado, nas colunas jornalísticas, “do contra”, “ecochato”, “militante”, “ideólogo da esquerda”, “ativista da esquerda”, “da turma do atraso”. A base ideológica dos ataques, calcada nos interesses dos grupos dominantes da capital, é a “vocação turística” de Florianópolis. Desenvolvo esse assunto em artigo intitulado “Sob ataque da imprensa: o papel dos 'contra' na defesa de Florianópolis (SC)”, publicado no livro “Confrontos na Cidade: luta pelo Plano Diretor nos 20 anos do Estatuto da Cidade” (2022).

Nas duas colunas, aparece um elemento em comum: a defesa do processo de licenciamento ambiental. Schettini afirma: “As documentações ambientais foram todas garantidas e a obra acionada”. Já Lula detalha: “A questão é que, para a realização da obra, foi necessário um projeto; depois desse, uma série de licenciamentos junto ao Instituto do Meio Ambiente (IMA), Capitania dos Portos, Superintendência do Patrimônio da União (SPU), todos órgãos responsáveis por liberar ou não uma obra. A questão é: será que esses órgãos estão todos errados, e apenas o professor está certo? Será que os profissionais desses órgãos colocariam seus registros profissionais em risco para atender a uma obra que, segundo Horta, trará prejuízos ambientais? A resposta é óbvia: claro que não!”. 

Pois agora. Licenciamentos são infalíveis? Basta pesquisar os recentes crimes ambientais no Brasil para compreender que eles falham. E mais: a legislação tem flexibilizado exigências e reclassificado o grau de risco de empreendimentos causadores de impacto ambiental, tendo Santa Catarina na vanguarda dos retrocessos. No caso do alargamento da praia de Jurerê, o primeiro edital para a obra foi suspenso após o Tribunal de Contas de Santa Catarina apontar irregularidades. Outros questionamentos são a ocupação desenfreada das praias, a falta de fiscalização e o uso de recursos públicos para obras derivadas do mau uso da faixa litorânea. Frente a isso, como um jornalista ou colunista se calça? Entre os fazeres está entrevistar quem tem propriedade para alertar, argumentar, questionar, apresentar alternativas.

A reportagem “Os prós e contras de alargar as praias de Santa Catarina”, do jornalista Maurício Frighetto para a DW Brasil, e a reportagem “SC vira símbolo do alargamento de praia e amplia orla até sem obra”, de Italo Nogueira para a Folha de S. Paulo, vão nessa linha. E elas apontam a miséria do jornalismo catarinense: reportagens importantes não têm mais onde sair no estado, e acabam em veículos de comunicação de fora de Santa Catarina. 

Essa miséria anda a par com outra, a miséria política. A prefeitura de Florianópolis e o governo do estado irrigam a mídia local com recursos. Nada de novo nisso, mas abriu-se uma fase em que o recurso ou implica um fecho completo na crítica ou uma deslavada campanha em prol da imagem dos governantes. Agora, não só não ouvem o dito “outro lado” como caçam postagens nas redes sociais para sobre elas amealhar injúrias, tentando desmerecer as vozes críticas.

Artigo publicado na página do jornal britânico The Guardian no dia 7 de fevereiro tem muito a dizer ao jornalismo catarinense. O texto se refere ao contexto da eleição nos Estados Unidos e afirma o seguinte: “A imprensa cobre a campanha de 2024 como se o clima não estivesse nas urnas, mas 56% dos eleitores dos EUA estão ‘preocupados’ ou ‘alarmados’ com a crise”. O ano passado, observa o artigo, foi o mais quente de que há registo – e os cientistas alertam que a queima de petróleo, gás e carvão deve ser rapidamente eliminada se quisermos preservar um planeta habitável, mas jornalistas muitas vezes não relacionam um fato com o outro. 

Destaco outro trecho:

“Mas há uma mudança fácil de fazer: perguntar aos candidatos o que vão fazer em relação à crise climática; especificamente, qual é o seu plano para eliminar rapidamente o petróleo, o gás e o carvão, como a ciência diz ser imperativo. Os jornalistas também podem perguntar aos candidatos se estes recebem dinheiro da indústria dos combustíveis fósseis, o principal motor da crise climática; e pergunte aos candidatos quais soluções eles têm para os eleitores que sofrem com o calor mortal e outros extremos climáticos”.

Em Santa Catarina, onde há espaço para isso e quem fará essas perguntas incômodas?

Há que tornar concreta uma experiência de comunicação/jornalismo efetivamente contra-hegemônica que supere a mera crítica à mídia hegemônica e as tentativas vãs de nela abrir espaço para confrontar os discursos oficiais e empresariais. Porque, no quadro atual, isso é deitar vinho velho em odres mais velhos ainda. 

O artigo do The Guardian  está em https://www.theguardian.com/commentisfree/2024/feb/07/climate-change-presidential-election-media-coverage

Atualização: notícia no Canal MPF sobre as ocupações ilegais em Jurerê, assinada pelo jornalista Delmar Gularte, mostra como é possível ouvir diferentes opiniões sem deixar de mostrar os fatos e permitir a quem assiste interpretar a informação.  Confira em: https://youtu.be/ViHSs2RtXEM?si=8Dck6pFL9EbRMAKt



terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

Artigo analisa a cobertura jornalística da rua na perspectiva da Antropologia Urbana



A revista de estudos multidisciplinares Monumenta publicou meu artigo intitulado “Etnografia de e na rua: desvelando a cidade na cobertura jornalística”, para o qual pesquisei 10 anos (2012 a 2022) de  cobertura  jornalística do  jornal ND, do  Grupo ND, sobre a Avenida Hercílio Luz, em Florianópolis. Também fiz oito saídas na Avenida Hercílio Luz, em diferentes dias de semana e horários, entre os dias 28 de maio de 2022 a 7 de janeiro de 2023.

Os  objetivos foram identificar 1) os temas de interesse e 2) os temas ausentes no jornalismo local, mas potencialmente capazes de levar a reflexões sobre a cidade a partir da cobertura da e na rua na perspectiva da antropologia urbana. Para caminhar nessa área, contei com o conhecimento da professora Viviane Vedana, minha supervisora em estágio pós-doutoral no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFSC. 

De tudo o que li (foram 494 registros encontrados), destaco uma reportagem do jornalista Paulo Clóvis Schmitz, na edição  de  24/25  de  fevereiro  de  2018,  intitulada “Todos  disputam  a  avenida”. A reportagem registra três importantes aspectos: 1) por sua constituição histórica, a  avenida  nunca  foi  lugar  de  unanimidades;  2) a  localização e as condições para a sociabilidade ali são únicas em Florianópolis e 3) a apropriação do espaço pelos bares e frequentadores  se  deu  “por  conta  própria”,  sem regulamentação balizadora prévia por parte da Prefeitura, o que ocorre posteriormente. Impressionante como, em duas páginas, o repórter consegue dar conta do passado, do presente e ainda adiantar os futuros conflitos de uso na Hercílio Luz. Faz o que busco teorizar em ensaio que escrevi sobre o método na reportagem, em https://itcidades.org.br/ensaio-discute-o-metodo-de-reportagem-nas-coberturas-de-cidade/. É um exemplo de “mão mandona” no jornalismo. 

Quem deseja conhecer a trajetória do PC pode clicar em https://www.youtube.com/watch?v=5aZ2VgGhwi0. Nós, da Revista Pobres & Nojentas, o entrevistamos para o Projeto Repórteres SC.

O meu artigo está em https://monumenta.emnuvens.com.br/monumenta/article/view/189/76

Outro está em gestação focando na cobertura sobre os conflitos de uso nos bares, que apareceram em nada menos que 63 edições do jornal no período analisado.

Esses artigos fazem parte de um projeto maior que batizei de “A Rua no Jornalismo”, nome do livro que pretendo lançar ainda em 2024. 


Alerta para o jornalismo ambiental: minoria compreende jargões ambientais



Notícia publicada na página do jornal britânico The Guardian no dia 24 de janeiro dá o que pensar ao jornalismo ambiental. Ela apresenta o resultado de um estudo feito por uma empresa e uma agência de comunicação no Reino Unido mostrando que apenas um quarto das pessoas interrogadas compreendia claramente o termo “verde” e aproximadamente o mesmo número conseguia descrever com precisão o que significava “sustentável”. Mesmo termos considerados de uso generalizado pelas empresas, como “amigo do ambiente” e “cultivado localmente”, são compreendidos apenas por uma minoria de pessoas. A dificuldade de compreensão também atinge as iniciativas políticas governamentais orientadas para a redução de resíduos, como a proibição de talheres e pratos de plástico descartáveis. 

A notícia, disponível em bit.ly/4bkR3dq, informa que, apesar da confusão em torno de alguns dos termos-chave, a investigação mostra um apoio extremamente amplo às questões: “nove em cada 10 consumidores consideraram importante que as empresas e marcas falassem sobre as suas iniciativas de sustentabilidade e 68% dos inquiridos eram mais propensos a comprar de uma empresa que tinha uma estratégia ambiental clara em vigor”.

A notícia cita ainda a opinião de Jamie Peters, da Friends of the Earth, para quem palavras-chave ambientais estão sendo sequestradas e mal utilizadas por empresas de petróleo e gás, que as utilizam para truques de marketing, e também pelo governo. 

Aqui no Brasil, o Ministério do Meio Ambiente desenvolvia, desde 1992, a pesquisa "O que o brasileiro pensa do meio ambiente e do consumo sustentável", mas a última foi em 2012. Naquele ano, o indicador mais relevante foi o número de pessoas que, 20 anos antes (1992), não sabiam mencionar sequer um problema ambiental na sua cidade ou no seu bairro, número que diminuiu para 10% em 2012, em relação aos 46% de 1992. A última pesquisa realizada está disponível em bit.ly/49iPhrD

É possível extrapolar o dado colhido no Reino Unido para interesses empresariais para discutir a escrita jornalística sobre a relação entre sociedade e natureza. A realidade brasileira não deve ser diferente da britânica, com boas chances de se apresentar ainda pior se a pesquisa fosse realizada aqui.

As pautas do jornalismo ambiental giram em torno de conceitos/práticas sobre a a crise climática, a sustentabilidade, o mercado de carbono, e há um imenso ponto de interrogação sobre o entendimento, por parte de leitores, ouvintes e telespectadores, das notícias e reportagens sobre essas temáticas. 

Um caminho para a resposta aponta para o entendimento de que a palavra no e do jornalismo precisa nascer do cotidiano e da experiência do corpo vivida no espaço. O pensador francês H. Lefebvre afirma que, a partir da vida cotidiana, mudam a língua e as linguagens, nascem palavras novas, gírias, muitas vezes marginais em relação à linguagem oficial (LEFEBVRE, 1978, p. 94). Estudar a linguagem na vida cotidiana, afirma o autor, implica tomar também o que ela não diz, o que evita dizer, o que não pode nem deve dizer. Para ele, uma revolução precisa dar lugar a um novo espaço, a um novo cotidiano e a uma nova linguagem:  

Uma revolução que não dá lugar a um novo espaço não chega a realizar todo seu potencial; trava e não gera mudanças de vida, apenas modifica as superestruturas ideológicas, as instituições, os aparatos políticos. Uma transformação revolucionária se verifica por sua capacidade criativa, geradora de efeitos na vida cotidiana, na linguagem e no espaço, embora seu impacto não tenha que acontecer necessariamente no mesmo ritmo e com intensidade semelhante (LEFEBVRE, 2013, p. 112).

Hoje, premido pelas mudanças nas rotinas de trabalho, o jornalismo mal estuda e pouco se alimenta da linguagem da vida cotidiana, do repertório de falas e fazeres das ruas. Ali, no espaço geográfico, com seus conflitos e tensões, onde os jargões, inclusive ambientais, fariam sentido na experiência do corpo, ausentam-se o jornalismo e os jornalistas. 

Há então que revolutear a pesquisa, o ensino e o fazer, recuperar a rua, embrenhar o corpo no espaço para dali alimentar o texto.  A um jornalismo comprometido com a emancipação humana cabe a tarefa de, pela linguagem, tornar visíveis as práticas criadoras que, no espaço e no cotidiano, podem levar à transformação social, em especial nas pautas que nos são caras no jornalismo ambiental.

Referências:

LEFEBVRE, Henri. De lo rural a lo urbano. Barcelona: Penísula, 1978.

LEFEBVRE, Henri. La producción del espacio. Espanha: Capitán Swing, 2013.

quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Luta por Moradia: 10 Anos da Ocupação Amarildo de Souza


No sábado completam-se 10 anos da Ocupação Amarildo de Souza, que iniciou em 16 de dezembro de 2013, com cerca de 50 pessoas, em um terreno quase todo público na SC-401, no bairro da Vargem Pequena, Norte da Ilha de Santa Catarina, a cinco quilômetros de um dos bairros mais valorizados do país, Jurerê Internacional. Atualmente, graças à luta, está consolidado, em Águas Mornas, o Assentamento Comuna Amarildo de Souza. 

Naquele dezembro de 2013, depois de duas décadas de ocupações espontâneas em diferentes localizações e em terrenos menos valorizados de Florianópolis, os leitores, ouvintes e telespectadores da imprensa local acompanharam, durante oito meses, a cobertura jornalística daquela ocupação organizada, que irrompeu no cotidiano da capital catarinense tendo como lema “Terra, Trabalho e Teto” ao defender a reforma urbana e a reforma agrária e escancarar o déficit habitacional na cidade onde a classe dominante tem reservado para si as melhores localizações no espaço. Com o passar das semanas, a ocupação chegou a ter 725 famílias.

Uma particularidade da Ocupação Amarildo de Souza foi a trajetória que seus ocupantes fizeram em diferentes espaços da área conurbada de Florianópolis. Cada movimentação no espaço geográfico gerava novo ciclo de notícias e reportagens, que analisei em tese de doutorado. No total de edições com o tema na capa ou na contracapa, foram 15 no Diário Catarinense, então impresso, e 28 no Notícias do Dia. Aquela ocupação foi vítima de uma violência institucional e midiática sem precedentes antes e depois. 

Eu venho nos últimos anos pesquisando comunicação, ideologia e alienação urbana para compreender como o espaço aparece na cobertura jornalística.  Trabalho com a tese de que o jornalismo de crítica do cotidiano, comprometido com a emancipação humana, tem que necessariamente elucidar a experiência vivida no espaço. No jornalismo, essa experiência do vivido com o corpo, os sentidos, é sufocada por uma cobertura que privilegia o concebido sobre o espaço. Isso significa privilegiar, nas notícias e reportagens, as fontes que representam os poderes e discursam sobre o espaço, em vez das pessoas que na vida cotidiana experimentam as consequências de viver em cidades onde tudo é transformado em mercadoria. 

Uma noção que tem me ajudado a compreender essas coberturas é a de alienação urbana, que encontrei em um livro de 1987 do arquiteto espanhol Carlos Sánchez-Casas. Esse autor afirma que a alienação urbana se subjetiviza de três formas: como segregação em relação ao conjunto social; como dominação em relação ao meio institucional e como desorientação geográfica e estranhamento em relação ao meio físico. 

Na segregação, a pessoa experimenta o isolamento e a solidão. O conjunto social aparece como inacessível ou opressivo, e a vida do outro se mostra inalcançável, mesmo quando está espacialmente próxima.

Na dominação, a relação com o meio institucional perde toda a espontaneidade e se converte em uma representação mecânica das condutas exigidas pelas instituições cristalizadas, em que o homem intervém como coisa. A dominação também provoca a ideologização do conhecimento, aceitando como inevitáveis situações que são produtos de determinadas relações de poder. 

Na desorientação geográfica e estranhamento, se experimenta a incapacidade de vivenciar o meio como fonte de sentimentos. No espaço, a pessoa encontra-se perdida e desenraizada. 

Sánchez-Casas afirma que, em uma relação apropriada, o indivíduo se reconhece na realidade social através de qualquer um de seus elementos e como co-partícipe em sua construção, reconhecendo-a como sua obra. Ao contrário, na relação alienada, a realidade social se impõe ao indivíduo como algo alheio à sua vontade, como um fato impenetrável e opressivo. 

A partir dos governos de Temer e Bolsonoro e, em especial, na pandemia de Covid-19, se observou um processo em que populações com dificuldades de pagar aluguel se viram forçadas a buscar abrigo em ocupações urbanas, mas, desalojadas por remoções, enfrentam agora a situação de rua, buscando continuamente formas de sobrevivência. Para elas, a cidade paulatinamente encolhe, restando tendas, barracas e pisos de viadutos.

Nas coberturas jornalísticas da mídia hegemônica, muitas vezes as construções dos empobrecidos aparecem como desordem e depredação que destrói a paisagem. As instituições os oprimem ou são inacessíveis, a cidade em sua plenitude lhes é negada e, como já dito, nem no discurso jornalístico essas populações empobrecidas obtêm algum tipo de legitimação de sua luta por moradia, sendo sua existência rotulada como indesejável.

A cobertura de um episódio da Ocupação Amarildo de Souza – a chamada Batalha do Rio Vermelho, fato ocorrido no feriado da Páscoa em 2014 – pelo programa RIC Notícias foi uma das mais expressivas para mostrar esse processo. Nas notícias, percebe-se a violência das instituições e do discurso jornalístico e, ao mesmo tempo, os mecanismos de alienação urbana, tanto dos ocupantes, que sequer são ouvidos na reportagem, quanto dos moradores das proximidades do terreno no Rio Vermelho. Esses moradores, em uma das notícias que analisei, falam sobre o quanto sofrem para trabalhar, morar e comer, mas não se reconhecem na realidade de quem ocupou aquela terra pelos mesmos motivos. 

No dia 1º de dezembro, estive em um debate realizado na UDESC sobre as experiências das ocupações da última década, em especial a Ocupação Amarildo de Souza e a Ocupação Contestado, em São José, que completou 11 anos. Participaram também famílias da Ocupação Carlos Marighella e famílias despejadas do Vale das Palmeiras. No evento, foi lançado o site do OcupaSC, que também é um Observatório de Comunidades e Periferias de Santa Catarina. O evento foi uma iniciativa do LABGEF e Territórios Populares da FAED/UDESC, Instituto Caeté e OcupaSC, em parceria com as ocupações e organizações políticas que atuam junto a elas, com o apoio do Fórum da Reforma Urbana.

Foi um bonito momento de compartilhar experiências. Representando o Assentamento Comuna Amarildo de Souza, Daltro de Sousa rememorou emocionado a trajetória das famílias naqueles meses de 2013 e 2014: “São passos que vão sendo dados”, disse ele, e vem a ideia de que são mesmo muitos e duros os passos na luta pelo direito à moradia. Patrícia de Oliveira, moradora da Ocupação Contestado, falou sobre como, graças à organização, uma ocupação tem ajudado as outras a se fortalecer na Área Conurbada de Florianópolis. “Hoje meu mundo é muito maior”, disse Patrícia, que falou sobre o quanto a luta coletiva e organizada ampliou a sua compreensão da realidade. 

Acompanhei de perto a errância daquelas famílias entre 2013 e 2014 e, passada uma década, há que comemorar: Assentamento Comuna Amarildo de Souza, firme! 


terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Livraria Desterrados convida para o lançamento, dia 16/12, do livro “Território e texto: jornalismo ambiental em Santa Catarina”


A Livraria Desterrados convida dia 16/12, sábado, das 10 horas ao meio-dia, para o lançamento do livro “Território e texto: jornalismo ambiental em Santa Catarina”, com seis artigos de jornalistas que, em momentos de sua trajetória, abordaram a relação entre sociedade e natureza no estado. A produção é da Revista Pobres & Nojentas com a Letra Editorial.
O livro traz valiosos achados e sinaliza caminhos para pesquisas e fazer profissional em Santa Catarina, que demanda um jornalismo comprometido com sua realidade socioespacial tão diversa e cada vez mais afetada pelas mudanças climáticas.
Os textos são de:
-Edson Rosa
-Elaine Tavares
-Imara Stallbaum
-Míriam Santini de Abreu
-Moacir Loth
-Rosane Lima
Foto de capa de Tasso Claudio Scherer e capa de Sandra Werle

segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

Jornalismo e espaço: método de reportagem


Enviei contribuição para o primeiro Caderno de Trabalho do Grupo de Trabalho 15 da Associação Latino-Americana de Pesquisadores em Comunicação (ALAIC). O GT 15 discute “Comunicação e cidade: habitar em tempos de transformação”.

A contribuição aponta elementos para um método de reportagem capaz de permitir ao jornalismo e aos jornalistas se situarem no espaço e no texto. Ele nasceu a partir da leitura de Adelmo Genro Filho, pesquisador e professor brasileiro criador de uma teoria marxista do jornalismo, e da obra de Henri Lefebvre, ambas enlaçadas em minha tese sobre o espaço no jornalismo. O enlace deixou uma ponta solta agora explorada, a ideia de o método regressivo-progressivo de Lefebvre contribuir para a construção de um método na reportagem capaz de alcançar, de forma crítica, as temporalidades e espacialidades com as quais os jornalistas lidam na cobertura jornalística do e no espaço.

O texto está em

https://itcidades.org.br/wp-content/uploads/2023/12/ENSAIO_MIRIAM_SANTINI_DE_ABREU.pdf

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

ESG e o blábláblá do mercado de carbono


Publiquei 17 anos atrás o livro, resultado de dissertação de mestrado em Geografia na UFSC, intitulado “Quando a palavra sustenta a farsa: o discurso jornalístico do desenvolvimento sustentável” (Editora da UFSC). Quase duas décadas se passaram e a farsa continua e se aprofunda. Os Grupos NSC e ND dão amplo espaço ao evento “ESG Summit Brazil”, realizado nos dias 21 e 22 em Florianópolis com o tema “O Futuro é Verde”. ESG, do inglês “environmental, social and governance”, é a sigla da moda e tem a ver com práticas ambientais, sociais e de governança de uma organização. O termo vem de uma publicação do Pacto Global em parceria com o Banco Mundial e está relacionado aos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), outra cortina de fumaça da ONU e entidades internacionais para distração enquanto o modo capitalista de produção acumula catástrofes. Ainda que seja irrelevante pela obviedade da conclusão, analisar o discurso jornalístico desses grupos de mídia catarinense traz de carona (sempre) a voz do empresariado e, com ela, a possibilidade de desvendar a ideologia do ESG.

O ND afirma que o evento “ganha relevância ao abordar temas cruciais para o desenvolvimento sustentável” e inclui debates sobre “Para onde caminha o mundo, caminham os negócios”, “ESG como pauta protagonista na gestão de marcas”, “Descarbonização e a importância de parcerias público-privadas na construção da nova economia verde”, entre outros temas “impactantes”.

No dia 21, notícia no site do ND tinha o seguinte título: “Com 5 tornados em menos de 1 mês, CEO da ONU Brasil diz que cenário pode piorar em SC”. Os entrevistados foram o “CEO” do Pacto Global da ONU no Brasil e o “VP” do Conselho de Administração da VALE, a gigante da mineração privatizada em 1997 que acumula crimes contra a natureza, como em Brumadinho e Mariana. Com esse histórico, os executivos, dando pitaco sobre os tornados em Santa Catarina, foram ao evento apresentar “soluções para um futuro mais verde e a criação de empresas mais sustentáveis”. Nessa linha, o ex-presidente da Louis Vuitton Brasil, marca de bolsas e malas, falou sobre o tema “ESG como pauta protagonista na gestão de marcas”. Ou seja, o blábláblá da sigla é só isso, negócio.

Como tem muito defensor da natureza seduzido pela ideia do chamado “mercado de crédito de carbono”, mais uma artimanha do Banco Mundial gerenciada pelas empresas, vale citar a presença, no evento, de uma empresa especializada em comprar “tokens” de crédito de carbono para uma pessoa ou empresa compensar sua emissão de gases de efeito estufa. “No site da empresa é possível calcular, na hora, quanto de carbono você emite e, depois, fazer esta compra de crédito”, informa a matéria.

É tudo para apaziguar a consciência e plantar a certeza de que as empresas darão solução ao horror ambiental que elas provocam. E isso na quinzena em que o Norte do país respira fumaça, o meio ferve no calor recorde e o Sul submerge em chuva sem trégua. 

Engordamento de praia: a miséria da política no jornalismo catarinense

Dois colunistas catarinenses tiraram o dia 8 de fevereiro para atacar o professor do Departamento de Botânica da UFSC Paulo Horta. Motivo: u...