Por Míriam Santini de Abreu
Desde a primavera passada, depois
das madrugadas maldormidas, eu despertava com tac tac tacs ou pah pah pahs.
Sete e pouco, sete e meia. Revirava os olhos e balbuciava para mim mesma:
- Ahhhhh... Chegaram os homens da
pracinha.
A barulhada vinha de lugares
indefinidos lá embaixo, de trás dos tapumes, e espantava o sono de vez.
Passadas a primavera e o verão,
agora, numa manhã à beira do outono, eu abri as cortinas do quarto e eis que
partiram os tapumes. A Praça Olívio Amorim, na
Avenida Hercílio Luz, foi devolvida à rua!
Desci para ver de perto. Trabalhadores da empreiteira ainda encaixavam o meio-fio e socavam uma a uma as últimas pedras do piso em petit pavê, de 1966, com representações da arte das rendeiras feitas por Hiedy de Assis Corrêa, o Hassis.
– Misericórdia! Terminaram?!
– Terminamos, moça – respondeu um
dos homens da pracinha. Era Gerci Farias, de 50 anos.
Eu sorri. A obra era dele, e era
também minha.
Desde setembro, Gerci acordava às 4 e meia e logo depois das 6 pegava o transporte da empreiteira de Palhoça a Florianópolis para, com os colegas de trabalho, dar forma ao projeto de reforma da praça, com expediente encerrado às 16h40.
Da labuta, o pior, conta ele, foi lidar com
as raízes das árvores, que há muito haviam desalojado as pedras da pracinha e
até das calçadas em volta.
– Elas tinham quebrado tudo. A
força da raiz! Foi bem trabalhoso.
E não dava para cortar de qualquer
jeito, era preciso cuidado para não danificar as árvores, conforme a orientação
recebida das equipes técnicas da prefeitura.
Mas também não foi pouco o esforço
para arrancar o meio-fio agarrado às raízes, atividade custosa, e
substituir por outro, e olha que esse meio-fio de agora é mais pesado e robusto do que o
anterior.
O pah pah pah, descobri, era o
barulho das pedras petit pavê sendo lavadas na betoneira para tirar restos de
terra e concreto.
Essas chamadas pedras portuguesas têm suas manhas. Antes de removê-las, Gerci fotografou cada desenho. Depois de lavadas, foi preciso alinhá-las no padrão em que estavam, socar, molhar e apenas no dia seguinte aplicar a mistura de cimento e areia, em 3 x 1, que as manterá no lugar. Ele já havia feito esse trabalho na Praça XV, em Canasvieiras e em Itajaí, e assim, por ser um calceteiro capaz de domar as pedrinhas portuguesas, assumiu o trabalho na Praça Olívio Amorim. A canseira maior dessa atividade é nas pernas, de ficar horas a fio acocorado e, socando uma a uma, trazer de volta os desenhos antes maltratados. Essas pedras, assim como os paralelepípedos e as lajotas, ensina Gerci, dão vazão à água, ao contrário do asfalto, que sufoca a terra.
Por muitas semanas trabalharam ali
apenas Gerci e o colega Carlos Augusto. A equipe aumentou na reta final, a tempo de
entregar a pracinha no aniversário da cidade, no dia 23 de março.
Gerci revela que observar o piso cuidadosamente recolocado, formando os desenhos, lhe dá um sentimento de orgulho, e as fotografias serão
guardadas de lembrança:
– Olhando agora, foi feito pedrinha
por pedrinha, e pra isso não é só estalar os dedos não!
O sorriso estreita as rugas finas em torno dos olhos, e eu me lembro delas quando dou a volta na pracinha e em torno de mim mesma ao fitar, bem de perto, as raízes emaranhadas de uma Ficus elástica, a falsa seringueira enorme na rua Hermann Blumenau, que continuam a se agarrar na terra, por agora um pouco domadas.
Espiar a pracinha todas as manhãs
foi e é parte da tentativa de manter a sanidade nesse tempo terrível.
Então, no dia 23, eu vou aplaudir a cidade e os homens da pracinha.
Como estava o petit pavê - Fotos: Gerci Farias |
Como ficou o petit pavê - Fotos: Gerci Farias |
Detalhes da pracinha |
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