Ato dos trabalhadores da COMCAP na Câmara de Vereadores em 18 de janeiro |
Lino Fernando Bragança Peres – professor aposentado e voluntário da UFSC, ex-vereador pelo PT em Florianópolis
Míriam
Santini de Abreu – jornalista
Vivemos tempos em que o banal passa por
extraordinário e o realmente extraordinário é tido por banal. Para isso é
necessária uma ideologia, no caso aqui exposto a ideologia urbanística tão bem
esmiuçada pelo sociólogo francês Henri Lefebvre, que concebeu o conceito de direito à cidade. Pela ideologia é
possível analisar fatos como o pouco caso da imprensa tradicional local ao
projeto da Prefeitura de Florianópolis de desafetar e alienar – ou seja, vender
– 51 imóveis do município que totalizam 39 mil metros quadrados, localizados
principalmente nas valorizadas praias do Norte da Ilha, um deles com 4.640
metros quadrados (Canasvieiras) e outro com 4.000 metros quadrados (Rio
Tavares), sendo que há terrenos estimados pela Prefeitura em R$ 5 milhões.
A receita daí obtida, diz a
justificativa para o projeto enviado à Câmara de Vereadores, será destinada ao
regime próprio de previdência dos servidores municipais, sem detalhar porque há
tal necessidade e deixando à Caixa a atribuição de avaliar quanto valem os
terrenos. Esse projeto vem casado com outros, que mais uma vez modificam o
Plano Diretor de Florianópolis (Lei 482/2014) e o Código de Obras sob a
justificativa – não detalhada – de geração de empregos. São, no total, seis
projetos enviados à Câmara em pleno recesso de janeiro, prática já adotada pelo
prefeito Gean Loureiro (DEM) no início do primeiro mandato (2017-2020).
Na justificativa do projeto que vende os
terrenos há uma afirmação notável: “... a Administração Pública Municipal
identificou imóveis desprovidos de qualquer interesse público primário ou
secundário”. Fala-se aqui da mesma Prefeitura que sistematicamente reclama da
falta de terrenos para construir moradias populares ou instalar equipamentos
públicos na capital onde estão bairros no topo da lista do metro quadrado mais
valorizado do país. Serão “desprovidos de qualquer interesse” também para a
iniciativa privada? Um campo de futebol tem
8.250 m², então se está falando de quase cinco campos de futebol. Estão
espalhados, mas poderiam ser pensados (e planejados) de forma una e em função
de um projeto urbano integrado.
Alguns terrenos menores estão junto a
outros maiores que ocupam meia quadra. No projeto, foram tratados de forma
indiferenciada e sem mapa de localização. Em função da carência de equipamentos
públicos (escolas, creches, postos de saúde etc) na região em que ficam
localizados, se houvesse debate público, poderia se adotar permutas, por
exemplo. Mas não! Serão todos desafetados e alienados sem maiores discussões e uma
rigorosa análise contábil, econômica, imobiliária e urbanística (potencial da
função urbana de um terreno para uma localidade específica).
O portal ND+ publicou notícia com a
seguinte afirmação, ao se referir a outro projeto, aquele que prevê mudanças no
Plano Diretor e Código de Obras: “O governo argumenta que o objetivo é retirar
entraves para quem quer construir dentro do que prevê a legislação e facilitar
o combate ao crescimento desordenado da Capital”. Em destaque, no título, a
afirmação do prefeito Gean: “Vamos atacar
muitas burrocracias”, diz Gean em defesa de pacote enviado à Câmara.
Três expressões, “retirar
entraves”, “combate ao crescimento desordenado” e “atacar burrocracias” exigem
análise pela ligação que tem com o espaço urbano no contexto das mudanças no
Plano Diretor e Código de Obras e na venda de terrenos. Para controlar a produção do espaço, afirma o
arquiteto e pesquisador Flávio Villaça na obra “
Para Lefebvre, o urbanismo é uma ideologia encoberta pelo mito da tecnocracia. Sua crítica aos tecnocratas se dá porque, em postos de poder, eles dissimulam o fato de que em todas as partes se aplica o mínimo de técnica existente (em moradias, bairros, sistemas de circulação), vendida como se fosse a única possível. A cidade é assim pensada e planejada nos gabinetes, descolada da prática urbana. Essa concepção obedece a uma lógica e a uma estratégia impostas pelo fato de todo espaço sob o capitalismo ser produto, resultado das relações de produção ditadas pelos detentores do poder.
Ora, o dito crescimento desordenado
de Florianópolis, ornado pela ideologia urbanística, é um projeto bem pensado. Tanto
que são frequentes as anistias aos construtores que fizeram obras irregulares ou clandestinas, facilidade
mais uma vez aberta pelos projetos em pauta na Câmara que mudam o Plano Diretor e o Código de Obras.
A ideia de “retirar entraves” e “atacar burrocracias” esteve presente em outros
discursos de Gean Loureiro e do prefeito anterior, César Souza Júnior, desde o
início das discussões que levaram ao atual Plano Diretor, aprovado em janeiro de 2014. Apesar
de mencionar a geração de até 15 mil empregos se os projetos forem aprovados, a
Prefeitura estaciona nesse discurso tão do agrado em meio ao horror provocado
pela pandemia de Covid-19, sem nada especificar sobre a natureza de tais
empregos ou sob que fórmula chegou a esse número. E vale mencionar que o nome
do projeto é “Floripa Mais Empregos”.
TERRAS
DOADAS NO GOLPE DA REFORMA AGRÁRIA
Não é de hoje que os grupos dominantes se beneficiam da generosidade que falta aos empobrecidos quando o assunto é distribuição de terras em Santa Catarina e na Ilha em especial. Na obra “O golpe da ‘Reforma Agrária’ – fraude bilionária na entrega de terras em Santa Catarina”, de 2017, o autor, Gert Schinke, através de extensa pesquisa nos arquivos do extinto Instituto de Reforma Agrária de Santa Catarina (IRASC), que funcionou entre as décadas de 1960 e 1970, comprova que, dos cerca de 16 mil títulos de propriedade entregues pelo órgão no estado, em torno de 11.200 poderiam ser considerados no mínimo irregulares pelos critérios que legalmente davam base para a reforma agrária.
Em vez de serem entregues
prioritariamente a camponeses, posseiros e pescadores, como previa a lei, as
terras foram concedidas a militares, funcionários públicos, empresários
pecuaristas e profissionais liberais. Tratou-se de uma fraude fundiária efetivada sob o manto de uma suposta reforma
agrária. Dos 16 mil títulos, foram 996 em Florianópolis. A maior gleba entregue pelo IRASC na capital teve 644 mil metros
quadrados, presente para uma pessoa jurídica que, poucos anos depois, a
revendeu, dando-se início a um loteamento, hoje a Daniela (leia mais em
http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/548341-a-fraude-da-reforma-agraria-em-santa-catarina-entrevista-especial-com-gert-shinke
Nesse sentido, a desfaçatez do discurso
de que os imóveis a serem vendidos são “desprovidos de qualquer interesse
público primário ou secundário” se alimenta dessas práticas históricas, que premiam
a especulação sobre a terra enquanto negam, por exemplo, o direito básico à
moradia. É preciso lembrar que em 2020 o prefeito Gean Loureiro tentou aprovar
o Projeto de Lei Complementar (PLC) 1.801/2019, que previa, entre outras
medidas, “a demolição sumária ou desfazimento de atividade, quando considerada
urgente para proteção da ordem urbanística, meio ambiente e segurança pública
ou de imóveis vizinhos”, desconsiderando as causas geradoras da falta de
moradia e das ocupações, exatamente a falta de terra disponível para habitação
e equipamentos públicos que poderiam ser utilizados nos imóveis que agora vão
ser vendidos.
Em um município no qual a própria Prefeitura
admite que 51% das construções são consideradas irregulares, ficou obscuro o
tratamento que seria dado a moradias precárias feitas por quem precisa escolher
entre comer ou pagar aluguel e a empreendimentos sem licença construídos para
especulação imobiliária. A proposta retorna agora, no projeto que muda o Código
de Obras – a exigir análise mais detalhada – sugerindo que a demolição sumária não se aplicará a construções
consolidadas até a data de publicação da lei, caso aprovada.
O fato é que, em nome da “geração de
empregos” não esmiuçada e do “combate ao crescimento desordenado”, irão se
beneficiar setores ligados aos grupos dominantes para os quais é válida apenas
a “burrocracia” que lhes dá vantagem. Ao liberar as construções consolidadas, a
Prefeitura as desvincula do REURB (programa de Regularização
Fundiária Urbana), que foi acordado pelo
prefeito Gean junto ao Ministério Público Estadual exatamente para regularizar
estes casos, assim como loteamentos e denominações de rua irregulares ou
clandestinas.
MAIS
FLUXO PARA O CAPITAL IMOBILIÁRIO
A crítica à “burrocracia” significa que o próprio Estado (Prefeitura) abre mão do controle público, que em Florianópolis já é precário. O fato é que há distorções que levam à morosidade apontada na análise de projetos formais pelo município. A generalização do que se acusa aqui de “burrocracia” implica afrouxamento dos entraves mínimos de regulação, que poderiam ser corrigidos pela transparência e controle também social e não somente técnico das construções que forem apreciadas pelo poder público. A ideologia neste caso está travestida de flexibilização na aplicação de regramentos, para dar fluxo ao capital imobiliário, que de fato é o que mais se beneficia deste processo.
Outro mecanismo ideológico, funcionando
pela ocultação de fatos, aparece na Exposição de Motivos da Mensagem 3 do
projeto que “institui o Floripa Mais Empregos e dá outras providências”. Ali há
várias lacunas quando se busca descrever o processo participativo do Plano
Diretor no ano de 2016, com 13 Audiências Públicas Distritais e uma Audiência
Pública final:
1) o histórico não menciona que aquele
processo se deu por grande participação das comunidades e que elas pressionaram
o Ministério Público Federal, o qual, por sua vez, acionou a Justiça Federal
para que a Prefeitura cumprisse determinação judicial, promovendo as reuniões e
as audiências mencionadas.
2) o histórico omite que o processo
deu-se também antes da aprovação da Lei Complementar 482/2014 (Plano Diretor),
em uma conturbada dinâmica de discussão pela Prefeitura, que ignorou as
audiências promovidas pelo Núcleo Gestor Municipal ao longo do primeiro
semestre de 2013 e que depois foram “simplificadas” por cinco Audiências Regionais,
culminando em uma Audiência Pública final em julho de 2013. As recomendações dessa
audiência, um evento de cinco horas, foram totalmente ignoradas pela Prefeitura,
que encaminhou à Câmara Municipal o projeto de Plano Diretor com pouca
incorporação do que foi debatido. Instalou-se um verdadeiro plantão dentro da
Câmara Municipal para acolher, a portas fechadas, uma série de emendas, sem a
menor discussão mesmo pelos vereadores que exigiam transparência no processo
com base nos ritos do regimento interno.
3) o histórico apaga a traumática
aprovação de mais de 300 emendas, que conformaram uma verdadeira concha de
retalhos, com aprovação feita ao modo do rolo compressor, em sessão no dia
6/01/14, na qual se aprovou, sem mapas anexados e sem texto oficial, o Plano Diretor,
com um plenário vazio de público e protestos calados a base de violência
policial e gás lacrimogêneo.
4) o histórico não conta que, depois da
aprovação do Plano Diretor na Câmara, foram as comunidades distritais e dos
bairros, com apoio dos movimentos populares, que pressionaram novamente o Ministério
Público Federal e a Justiça Federal a retomarem a revisão do Plano Diretor,
quando se implementaram as 13 Audiências Públicas Distritais e a Audiência
Pública Final até o encerramento da gestão do prefeito César Souza Júnior.
5) a Exposição de Motivos omite, já na
gestão do atual prefeito Gean, o golpe final ao Plano Diretor em julho de 2017,
quando a Prefeitura teve êxito no TRF-4, em Porto Alegre, e no STJ, em
Brasília, interrompendo a discussão que se tinha feito até então, com mais da
metade de acordo com o conteúdo do Plano Diretor entre todos os membros do Núcleo
Gestor do Plano Diretor Participativo. Isto ocorreu depois que, no primeiro
semestre de 2017, e pela terceira vez, as lideranças haviam conseguido, via Ministério
Público Federal e Justiça Federal, que Gean cumprisse um cronograma de
discussão do Plano Diretor, com a realização de várias reuniões e Audiência
Pública Final. Ganhando a ação em Brasília no tapetão, Gean abortou a Audiência
Pública Final, sob a alegação da Prefeitura de que a jurisdição legal para avaliar
as tramitações do Plano Diretor era estadual e não federal. Isto derrubou as
cobranças do Ministério Público Federal e Justiça Federal à Prefeitura. A
esfera jurisdicional federal devia-se ao fato de que parte significativa do
município de Florianópolis fica em terras federais e áreas de domínio da União
e sob legislação ambiental federal. Outro motivo para o assunto ser tratado em
esfera federal era que o processo se rege por leis federais (artigo 182 da Constituição
Federal e Lei 10257/01 - Estatuto da Cidade, que garante a participação ampla
da sociedade na aprovação do Plano Diretor). Porém, todas estas prerrogativas
foram invalidadas com a vitória que Gean obteve junto ao STJ.
6) por último, outro ponto não abordado é
que o Conselho Municipal da Cidade foi constituído na gestão de Gean de forma discutível,
eliminando-se organizações que participaram intensamente e por anos do Plano Diretor
só porque não tinham CNPJ. O fato é que a proporcionalidade de representação ficou
totalmente desequilibrada. Categorias profissionais importantes ficaram de fora
e também se aumentou a representação empresarial, diminuindo a da sociedade
civil organizada.
A Exposição de Motivos alega, ainda, que
o texto do Plano Diretor tem várias inconsistências jurídicas e técnicas. Mas o
fato é que as mudanças propostas agora pela Prefeitura não são de forma e sim
estruturais no texto da lei do Plano Diretor. Portanto, qualquer alteração
deveria passar por audiências públicas e pela avaliação do Conselho da Cidade. A
coisa não é tão simples como o prefeito Gean e a imprensa tradicional estão
tentando passar para a população. Como o
prefeito entregou na Câmara tudo junto e misturado, como se diz, isto permite
que matérias que exigiriam tratamento e quórum diferenciado, conforme o
regimento da Casa – caso do Plano Diretor – fiquem camufladas em meio a
matérias de natureza ordinária.
Voltamos ao ponto com que
iniciamos o artigo: vivemos tempos em que o banal
passa por extraordinário e o realmente extraordinário é tido por banal. O
extraordinário – a pandemia de Covid-19 – que exigiria da Câmara Municipal e da
Prefeitura ações urgentes e emergentes, com programas de testagem e vacinação
em massa, fica ofuscado pelo banal - as ações legislativas rotineiras, tornadas
excepcionais pela insistência de Gean de votar projetos sem urgência em pleno
recesso legislativo.
Com isso, ele aproveita para mexer no Plano
Diretor, no Código de Obras, no Plano de Cargos e Salários dos servidores,
terceiriza a estrutura pública da COMCAP etc, medidas que, por serem
extraordinárias, deveriam ser amplamente discutidas por toda a sociedade. Mas são
tratadas como banais, com aparência de “evidentes”, como necessidades já
supostamente aceitas pelo senso comum, para superar “entraves burrocráticos” da
tramitação administrativa de licenças e alvarás de construção, ou nivelar os
salários e benefícios dos servidores da COMCAP aos dos demais servidores,
escondendo o desmonte desta empresa. Tudo isto se dá sob o olhar beneplácito da
imprensa tradicional local, que referenda o discurso da “burrocracia” e dos
“privilégios” dos servidores, silenciando ou minimizando as discordâncias.
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