terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Ideologia urbanística na venda de terrenos públicos de Florianópolis e nas mudanças no Plano Diretor e no Código de Obras

 
Ato dos trabalhadores da COMCAP na Câmara de Vereadores em 18 de janeiro

Lino Fernando Bragança Peres – professor aposentado e voluntário da UFSC, ex-vereador pelo PT em Florianópolis

Míriam Santini de Abreu – jornalista

Vivemos tempos em que o banal passa por extraordinário e o realmente extraordinário é tido por banal. Para isso é necessária uma ideologia, no caso aqui exposto a ideologia urbanística tão bem esmiuçada pelo sociólogo francês Henri Lefebvre, que concebeu o conceito de direito à cidade. Pela ideologia é possível analisar fatos como o pouco caso da imprensa tradicional local ao projeto da Prefeitura de Florianópolis de desafetar e alienar – ou seja, vender – 51 imóveis do município que totalizam 39 mil metros quadrados, localizados principalmente nas valorizadas praias do Norte da Ilha, um deles com 4.640 metros quadrados (Canasvieiras) e outro com 4.000 metros quadrados (Rio Tavares), sendo que há terrenos estimados pela Prefeitura em R$ 5 milhões.

A receita daí obtida, diz a justificativa para o projeto enviado à Câmara de Vereadores, será destinada ao regime próprio de previdência dos servidores municipais, sem detalhar porque há tal necessidade e deixando à Caixa a atribuição de avaliar quanto valem os terrenos. Esse projeto vem casado com outros, que mais uma vez modificam o Plano Diretor de Florianópolis (Lei 482/2014) e o Código de Obras sob a justificativa – não detalhada – de geração de empregos. São, no total, seis projetos enviados à Câmara em pleno recesso de janeiro, prática já adotada pelo prefeito Gean Loureiro (DEM) no início do primeiro mandato (2017-2020).

Na justificativa do projeto que vende os terrenos há uma afirmação notável: “... a Administração Pública Municipal identificou imóveis desprovidos de qualquer interesse público primário ou secundário”. Fala-se aqui da mesma Prefeitura que sistematicamente reclama da falta de terrenos para construir moradias populares ou instalar equipamentos públicos na capital onde estão bairros no topo da lista do metro quadrado mais valorizado do país. Serão “desprovidos de qualquer interesse” também para a iniciativa privada? Um campo de futebol tem 8.250 m², então se está falando de quase cinco campos de futebol. Estão espalhados, mas poderiam ser pensados (e planejados) de forma una e em função de um projeto urbano integrado.

Alguns terrenos menores estão junto a outros maiores que ocupam meia quadra. No projeto, foram tratados de forma indiferenciada e sem mapa de localização. Em função da carência de equipamentos públicos (escolas, creches, postos de saúde etc) na região em que ficam localizados, se houvesse debate público, poderia se adotar permutas, por exemplo. Mas não! Serão todos desafetados e alienados sem maiores discussões e uma rigorosa análise contábil, econômica, imobiliária e urbanística (potencial da função urbana de um terreno para uma localidade específica).

O portal ND+ publicou notícia com a seguinte afirmação, ao se referir a outro projeto, aquele que prevê mudanças no Plano Diretor e Código de Obras: “O governo argumenta que o objetivo é retirar entraves para quem quer construir dentro do que prevê a legislação e facilitar o combate ao crescimento desordenado da Capital”. Em destaque, no título, a afirmação do prefeito Gean: “Vamos atacar muitas burrocracias”, diz Gean em defesa de pacote enviado à Câmara.

Três expressões, “retirar entraves”, “combate ao crescimento desordenado” e “atacar burrocracias” exigem análise pela ligação que tem com o espaço urbano no contexto das mudanças no Plano Diretor e Código de Obras e na venda de terrenos. Para controlar a produção do espaço, afirma o arquiteto e pesquisador Flávio Villaça na obra “Espaço intra-urbano no Brasil” (2001), as camadas de alta renda utilizam três mecanismos: o mercado, especialmente o mercado imobiliário, o Estado (pela localização das instituições públicas, a produção de infraestrutura e a legislação urbanística) e a ideologia. 

Para Lefebvre, o urbanismo é uma ideologia encoberta pelo mito da tecnocracia. Sua crítica aos tecnocratas se dá porque, em postos de poder, eles dissimulam o fato de que em todas as partes se aplica o mínimo de técnica existente (em moradias, bairros, sistemas de circulação), vendida como se fosse a única possível. A cidade é assim pensada e planejada nos gabinetes, descolada da prática urbana. Essa concepção  obedece a uma lógica e a uma estratégia impostas pelo fato de todo espaço sob o capitalismo ser produto, resultado das relações de produção ditadas pelos detentores do poder. 

Ora, o dito crescimento desordenado de Florianópolis, ornado pela ideologia urbanística, é um projeto bem pensado. Tanto que são frequentes as anistias aos construtores que fizeram obras irregulares ou clandestinas, facilidade mais uma vez aberta pelos projetos em pauta na Câmara  que mudam o Plano Diretor e o Código de Obras. A ideia de “retirar entraves” e “atacar burrocracias” esteve presente em outros discursos de Gean Loureiro e do prefeito anterior, César Souza Júnior, desde o início das discussões que levaram ao atual Plano Diretor, aprovado em janeiro de 2014. Apesar de mencionar a geração de até 15 mil empregos se os projetos forem aprovados, a Prefeitura estaciona nesse discurso tão do agrado em meio ao horror provocado pela pandemia de Covid-19, sem nada especificar sobre a natureza de tais empregos ou sob que fórmula chegou a esse número. E vale mencionar que o nome do projeto é “Floripa Mais Empregos”.

TERRAS DOADAS NO GOLPE DA REFORMA AGRÁRIA

Não é de hoje que os grupos dominantes se beneficiam da generosidade que falta aos empobrecidos quando o assunto é distribuição de terras em Santa Catarina e na Ilha em especial. Na obra “O golpe da ‘Reforma Agrária’ – fraude bilionária na entrega de terras em Santa Catarina”, de 2017, o autor, Gert Schinke, através de extensa pesquisa nos arquivos do extinto Instituto de Reforma Agrária de Santa Catarina (IRASC), que funcionou entre as décadas de 1960 e 1970, comprova que, dos cerca de 16 mil títulos de propriedade entregues pelo órgão no estado, em torno de 11.200 poderiam ser considerados no mínimo irregulares pelos critérios que legalmente davam base para a reforma agrária. 

Em vez de serem entregues prioritariamente a camponeses, posseiros e pescadores, como previa a lei, as terras foram concedidas a militares, funcionários públicos, empresários pecuaristas e profissionais liberais. Tratou-se de uma fraude fundiária efetivada sob o manto de uma suposta reforma agrária. Dos 16 mil títulos, foram 996 em Florianópolis. A maior gleba entregue pelo IRASC na capital teve 644 mil metros quadrados, presente para uma pessoa jurídica que, poucos anos depois, a revendeu, dando-se início a um loteamento, hoje a Daniela (leia mais em http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/548341-a-fraude-da-reforma-agraria-em-santa-catarina-entrevista-especial-com-gert-shinke

Nesse sentido, a desfaçatez do discurso de que os imóveis a serem vendidos são “desprovidos de qualquer interesse público primário ou secundário” se alimenta dessas práticas históricas, que premiam a especulação sobre a terra enquanto negam, por exemplo, o direito básico à moradia. É preciso lembrar que em 2020 o prefeito Gean Loureiro tentou aprovar o Projeto de Lei Complementar (PLC) 1.801/2019, que previa, entre outras medidas, “a demolição sumária ou desfazimento de atividade, quando considerada urgente para proteção da ordem urbanística, meio ambiente e segurança pública ou de imóveis vizinhos”, desconsiderando as causas geradoras da falta de moradia e das ocupações, exatamente a falta de terra disponível para habitação e equipamentos públicos que poderiam ser utilizados nos imóveis que agora vão ser vendidos.  

Em um município no qual a própria Prefeitura admite que 51% das construções são consideradas irregulares, ficou obscuro o tratamento que seria dado a moradias precárias feitas por quem precisa escolher entre comer ou pagar aluguel e a empreendimentos sem licença construídos para especulação imobiliária. A proposta retorna agora, no projeto que muda o Código de Obras – a exigir análise mais detalhada – sugerindo que a demolição sumária não se aplicará a construções consolidadas até a data de publicação da lei, caso aprovada.

O fato é que, em nome da “geração de empregos” não esmiuçada e do “combate ao crescimento desordenado”, irão se beneficiar setores ligados aos grupos dominantes para os quais é válida apenas a “burrocracia” que lhes dá vantagem. Ao liberar as construções consolidadas, a Prefeitura as desvincula do REURB (programa de Regularização Fundiária Urbana), que foi acordado pelo prefeito Gean junto ao Ministério Público Estadual exatamente para regularizar estes casos, assim como loteamentos e denominações de rua irregulares ou clandestinas.

MAIS FLUXO PARA O CAPITAL IMOBILIÁRIO

A crítica à “burrocracia” significa que o próprio Estado (Prefeitura) abre mão do controle público, que em Florianópolis já é precário. O fato é que há distorções que levam à morosidade apontada na análise de projetos formais pelo município. A generalização do que se acusa aqui de “burrocracia” implica afrouxamento dos entraves mínimos de regulação, que poderiam ser corrigidos pela transparência e controle também social e não somente técnico das construções que forem apreciadas pelo poder público. A ideologia neste caso está travestida de flexibilização na aplicação de regramentos, para dar fluxo ao capital imobiliário, que de fato é o que mais se beneficia deste processo. 

Outro mecanismo ideológico, funcionando pela ocultação de fatos, aparece na Exposição de Motivos da Mensagem 3 do projeto que “institui o Floripa Mais Empregos e dá outras providências”. Ali há várias lacunas quando se busca descrever o processo participativo do Plano Diretor no ano de 2016, com 13 Audiências Públicas Distritais e uma Audiência Pública final:

1) o histórico não menciona que aquele processo se deu por grande participação das comunidades e que elas pressionaram o Ministério Público Federal, o qual, por sua vez, acionou a Justiça Federal para que a Prefeitura cumprisse determinação judicial, promovendo as reuniões e as audiências mencionadas.

2) o histórico omite que o processo deu-se também antes da aprovação da Lei Complementar 482/2014 (Plano Diretor), em uma conturbada dinâmica de discussão pela Prefeitura, que ignorou as audiências promovidas pelo Núcleo Gestor Municipal ao longo do primeiro semestre de 2013 e que depois foram “simplificadas” por cinco Audiências Regionais, culminando em uma Audiência Pública final em julho de 2013. As recomendações dessa audiência, um evento de cinco horas, foram totalmente ignoradas pela Prefeitura, que encaminhou à Câmara Municipal o projeto de Plano Diretor com pouca incorporação do que foi debatido. Instalou-se um verdadeiro plantão dentro da Câmara Municipal para acolher, a portas fechadas, uma série de emendas, sem a menor discussão mesmo pelos vereadores que exigiam transparência no processo com base nos ritos do regimento interno.

3) o histórico apaga a traumática aprovação de mais de 300 emendas, que conformaram uma verdadeira concha de retalhos, com aprovação feita ao modo do rolo compressor, em sessão no dia 6/01/14, na qual se aprovou, sem mapas anexados e sem texto oficial, o Plano Diretor, com um plenário vazio de público e protestos calados a base de violência policial e gás lacrimogêneo.

4) o histórico não conta que, depois da aprovação do Plano Diretor na Câmara, foram as comunidades distritais e dos bairros, com apoio dos movimentos populares, que pressionaram novamente o Ministério Público Federal e a Justiça Federal a retomarem a revisão do Plano Diretor, quando se implementaram as 13 Audiências Públicas Distritais e a Audiência Pública Final até o encerramento da gestão do prefeito César Souza Júnior.

5) a Exposição de Motivos omite, já na gestão do atual prefeito Gean, o golpe final ao Plano Diretor em julho de 2017, quando a Prefeitura teve êxito no TRF-4, em Porto Alegre, e no STJ, em Brasília, interrompendo a discussão que se tinha feito até então, com mais da metade de acordo com o conteúdo do Plano Diretor entre todos os membros do Núcleo Gestor do Plano Diretor Participativo. Isto ocorreu depois que, no primeiro semestre de 2017, e pela terceira vez, as lideranças haviam conseguido, via Ministério Público Federal e Justiça Federal, que Gean cumprisse um cronograma de discussão do Plano Diretor, com a realização de várias reuniões e Audiência Pública Final. Ganhando a ação em Brasília no tapetão, Gean abortou a Audiência Pública Final, sob a alegação da Prefeitura de que a jurisdição legal para avaliar as tramitações do Plano Diretor era estadual e não federal. Isto derrubou as cobranças do Ministério Público Federal e Justiça Federal à Prefeitura. A esfera jurisdicional federal devia-se ao fato de que parte significativa do município de Florianópolis fica em terras federais e áreas de domínio da União e sob legislação ambiental federal. Outro motivo para o assunto ser tratado em esfera federal era que o processo se rege por leis federais (artigo 182 da Constituição Federal e Lei 10257/01 - Estatuto da Cidade, que garante a participação ampla da sociedade na aprovação do Plano Diretor). Porém, todas estas prerrogativas foram invalidadas com a vitória que Gean obteve junto ao STJ.

6) por último, outro ponto não abordado é que o Conselho Municipal da Cidade foi constituído na gestão de Gean de forma discutível, eliminando-se organizações que participaram intensamente e por anos do Plano Diretor só porque não tinham CNPJ. O fato é que a proporcionalidade de representação ficou totalmente desequilibrada. Categorias profissionais importantes ficaram de fora e também se aumentou a representação empresarial, diminuindo a da sociedade civil organizada.

A Exposição de Motivos alega, ainda, que o texto do Plano Diretor tem várias inconsistências jurídicas e técnicas. Mas o fato é que as mudanças propostas agora pela Prefeitura não são de forma e sim estruturais no texto da lei do Plano Diretor. Portanto, qualquer alteração deveria passar por audiências públicas e pela avaliação do Conselho da Cidade. A coisa não é tão simples como o prefeito Gean e a imprensa tradicional estão tentando passar para a população.  Como o prefeito entregou na Câmara tudo junto e misturado, como se diz, isto permite que matérias que exigiriam tratamento e quórum diferenciado, conforme o regimento da Casa – caso do Plano Diretor – fiquem camufladas em meio a matérias de natureza ordinária.

Voltamos ao ponto com que iniciamos o artigo: vivemos tempos em que o banal passa por extraordinário e o realmente extraordinário é tido por banal. O extraordinário – a pandemia de Covid-19 – que exigiria da Câmara Municipal e da Prefeitura ações urgentes e emergentes, com programas de testagem e vacinação em massa, fica ofuscado pelo banal - as ações legislativas rotineiras, tornadas excepcionais pela insistência de Gean de votar projetos sem urgência em pleno recesso legislativo.

Com isso, ele aproveita para mexer no Plano Diretor, no Código de Obras, no Plano de Cargos e Salários dos servidores, terceiriza a estrutura pública da COMCAP etc, medidas que, por serem extraordinárias, deveriam ser amplamente discutidas por toda a sociedade. Mas são tratadas como banais, com aparência de “evidentes”, como necessidades já supostamente aceitas pelo senso comum, para superar “entraves burrocráticos” da tramitação administrativa de licenças e alvarás de construção, ou nivelar os salários e benefícios dos servidores da COMCAP aos dos demais servidores, escondendo o desmonte desta empresa. Tudo isto se dá sob o olhar beneplácito da imprensa tradicional local, que referenda o discurso da “burrocracia” e dos “privilégios” dos servidores, silenciando ou minimizando as discordâncias.

 

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