terça-feira, 12 de outubro de 2021

Sob os olhos do Judiciário, os empobrecidos e a pandemia

 

Mapa: Campanha Despejo Zero

Míriam Santini de Abreu - jornalista

– Pandemia? Pandemia? O pobre já nasce na pandemia. Pandemia não é novidade pro pobre. 

Isso eu ouvi de um pedreiro sentado na entrada de uma vendinha, eu esperando a chuva passar, ele fugindo de uma discussão com a mulher, quando perguntei o quanto a pandemia tinha piorado as coisas.

Cito o breve trecho daquela longa e estranha conversa porque, em meio à pandemia de Covid-19, os moradores da Ocupação Marielle Franco, no Maciço do Morro da Cruz, em Florianópolis, foram intimados a participar de uma audiência de mediação na Comarca da Capital marcada para sexta-feira, dia 15, e até agora mantida apesar de sucessivos pedidos de cancelamento feitos em juízo.

A fome ronda a Ocupação e o Morro. A fome ronda o país onde até ossos são cobrados (4 reais o quilo!). Dia 29 de setembro, circulou nas redes sociais um pedido da Marielle: 

Oi gente do bem, estamos novamente em campanha de cestas básicas, digo novamente porque infelizmente com o descaso que vivemos e com o aumento abusivo dos alimentos cada dia que passa nossos balcões e geladeiras estão mais e mais vazias. 

Agora, à preocupação com arrumar comida se junta outra ali na Marielle: proteger a moradia precária. Em juízo, para adiar a audiência, a Ocupação pediu algo simples, mas extraordinariamente complexo em um sistema de justiça no qual o pau que bate em Chico não costuma bater em Francisco. O pedido: que a lei seja cumprida.

Foi publicada no Diário Oficial da União do dia 8 de outubro a Lei nº 14.216, que suspende o cumprimento de medida judicial, extrajudicial ou administrativa que resulte em desocupação ou remoção forçada coletiva em imóvel privado ou público urbano, e a concessão de liminar em ação de despejo. A medida vale até 31 de dezembro.

Essa lei foi resultado de uma forte mobilização popular porque as remoções forçadas estavam jogando nas ruas milhares de pessoas, deixando-as ainda mais vulneráveis ao vírus da Covid-19. Segundo a Campanha Despejo Zero, 19.875 famílias foram despejadas no Brasil de julho de 2020 até agosto de 2021, um aumento de 310% no último ano. O presidente Jair Bolsonaro vetou a lei, mas o veto dele foi derrubado.

O artigo 2º da Lei diz o seguinte: 

§ 3º Durante o período mencionado no caput deste artigo, não serão adotadas medidas preparatórias ou negociações com o fim de efetivar eventual remoção, e a autoridade administrativa ou judicial deverá manter sobrestados os processos em curso. 

Portanto, a audiência de mediação na Comarca de Florianópolis marcada para sexta não pode ocorrer. Mas, até agora, continua marcada. 

No dia em que escutei a conversa do pedreiro, escutei outra também, a de um motorista agora desempregado, passado dos 60 anos, viúvo há três meses, que pagava 800,00 reais de aluguel por uma casinha no Morro da Cruz. O salário mínimo está em 1.192,40. Mas salário mínimo, depois da reforma trabalhista, é luxo! Muitos trabalhadores ali na Marielle, depois de meses amargando o desemprego, conseguiram bicos que pagam 30, 40 por dia. Dá 900 se o bico não deixar a pessoa na mão e com ele der pra contar 30 dias no mês, mas não é o caso. Pagando aluguel de 800,00, sobra 100 pro restante das contas. Não paga um botijão de gás. 

Razão tem o pedreiro.


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Engordamento de praia: a miséria da política no jornalismo catarinense

Dois colunistas catarinenses tiraram o dia 8 de fevereiro para atacar o professor do Departamento de Botânica da UFSC Paulo Horta. Motivo: u...