quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Sob ameaças, há 30 anos 100 famílias de Florianópolis plantaram a luta por moradia

 

Crédito: Elisa Jorge

Na edição de dezembro de 1990, de número 7, o Jornal das Comunidades circulou com a manchete “Adeus, 1990, um ano duro”. Naquele ano, na madrugada de 28 para 29 de julho, aconteceu a primeira ocupação organizada em Florianópolis, a Novo Horizonte, com cerca de 100 famílias. Alguns meses depois, na madrugada do Dia de Finados, registrou-se a segunda, batizada de Nova Esperança, aquela no bairro Monte Cristo e esta na Coloninha, ambas no Continente. 2020, também difícil, marca os 30 anos daquele momento histórico da luta por moradia em Florianópolis, lembrados enquanto marcha uma pandemia que já matou quase 192 mil pessoas no país e onde a taxa de desemprego está em 14,3%.

O Jornal das Comunidades, publicação da então Coordenação da Comissão de Associações de Moradores de Florianópolis, teve ao menos oito edições impressas entre maio de 1989 e dezembro de 1990, com tiragem de 3 mil exemplares distribuídos em comunidades do Maciço Central e em bairros onde havia ocupações de famílias de baixa renda. Na edição de julho/agosto de 1990, de número 6, a capa trazia a manchete “Ocupação” e um texto que bem sintetiza aquele fato marcante:

Cem famílias sem terra, sem teto e sem medo escreveram um pedaço de História, com as próprias mãos, na madrugada fria de 28 para 29 de julho. Ocuparam um terreno baldio da Cohab, no Pasto do Gado às margens da Via Expressa, em Florianópolis. Foi a primeira ocupação organizada de áreas urbanas de Santa Catarina. E eles querem fincar pé naquela terra.

– Somos nós que construímos esta cidade, mas até agora não nos deram o direito de morar dignamente. Por isso, decidimos: OCUPAR, RESISTIR E CONSTRUIR.

A ocupação é a última saída para os 40 mil sem-teto da Capital, que vivem no sufoco do aluguel, no aperto dos cortiços e sob a ameaça dos despejos (OCUPAÇÃO, jul./ago. 1990, p. 1).


Em Florianópolis, talvez a mais candente expressão da atualidade do que movia e move milhares de pessoas sem possibilidades de moradia seja o conjunto de atos e caminhadas em protesto contra a possibilidade de “demolição sumária”, prevista no Projeto de Lei Complementar (PLC) 1.801/2019, proposto pelo prefeito Gean Loureiro (DEM) e que tramitou na Câmara de Vereadores em agosto/setembro. A sinistra palavra demolição aparecia em uma das faixas gigantes carregadas pelos moradores nos Atos de rua contra o Projeto de Lei. 

A iniciativa da Prefeitura teve repercussão internacional, levando ao lançamento, na capital catarinense, da Campanha #DespejoZero Pela Vida no Campo e na Cidade, por iniciativa do Movimento Nacional de Luta por Moradia (MNLM), do Instituto Gentes de Direitos (IGentes) e do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico – Regional Sul (IBDU), para pressionar pela retirada do PLC da Casa Legislativa. O projeto acabou voltando para a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara e o ano encerrou sem que tivesse retornado ao Plenário. Em 2021, com a reeleição de Gean, não se sabe o que virá pela frente.

A campanha Despejo Zero busca a suspensão de qualquer atividade ou violação de direitos, de iniciativa privada ou pública, respaldada em decisão judicial ou administrativa, que desabrigue famílias e comunidades. O acompanhamento dos casos revelou que 6.373 famílias foram despejadas durante a pandemia de Covid-19 no Brasil entre março e agosto, e 18.840 corriam o risco de despejo. Em Florianópolis, cerca de 330 famílias que vivem em ocupações temiam ficar na rua se o projeto fosse aprovado. 
 
“O medo é constante, mas a gente acredita que a união popular tem força”, afirmou um morador da Vila Aparecida, no Continente, que participou do Ato realizado naquele 21 de setembro. Foram vários Atos ao longo de agosto e setembro unindo moradores das ocupações. As caminhadas, no Centro da Capital, terminavam na Prefeitura ou na Câmara de Vereadores nos dias em que o projeto foi a Plenário.
 
O projeto do Executivo trata dos atos infracionais contra a ordem urbanística e como vai se dar a fiscalização pelo município. Em linhas gerais, define como será a punição de quem afrontar a ordem urbanística, descumprindo o Código de Obras, a Lei de Parcelamento do Solo, o Plano Diretor e demais leis sobre uso e ocupação do solo.
 
O artigo 45, intitulado “Da Demolição Sumária”, diz que a fiscalização de obras poderá, diretamente ou através de empresa contratada, fazer “a demolição sumária ou desfazimento de atividade, quando considerada urgente para proteção da ordem urbanística, meio ambiente e segurança pública ou de imóveis vizinhos”, nos seguintes casos: 1) obras não licenciadas; 2) obras localizadas em áreas de risco sem acompanhamento de responsável técnico; 3) risco iminente de caráter público; 4) obra de muro frontal com alinhamento irregular; 5) obras em área pública e 6) obras em área de preservação permanente. Feita a demolição, diz o projeto que o infrator deverá ressarcir as despesas feitas pela Administração Municipal.

Em parecer de 21 páginas sobre o PLC 1.801/2019, o IGentes e o IBDU Regional Sul apontaramm, entre outras, as violações abertas pelo citado artigo 45. Segundo o parecer, ao possibilitar demolir habitações sumariamente, o projeto dá margem a precedentes que podem prejudicar, de forma irreversível, o contraditório e a ampla defesa, sem que o autuado tenha a oportunidade de fazer prova em favor próprio, de defender-se, como está na Constituição Federal. O projeto, afirmam os autores, viola duplamente a Constituição ao prever a possibilidade de os agentes públicos adentrarem nas casas e obras e apreenderem materiais e documentos sem qualquer formalidade. As entidades alertaram que o projeto prejudicaria os empobrecidos, visto que os detentores de poder aquisitivo raramente têm construções irregulares ou clandestinas demolidas, e menos ainda de forma sumária.

As pontes que unem essas três décadas passadas entre aquela primeira ocupação e esse 2020 que finda são a luta e a organização dos moradores das ocupações. Em julho, solicitei ao historiador Francisco Canella, professor da UDESC, que fizesse para a Folha da Cidade um artigo sobre o legado dos 30 anos das ocupações urbanas em Florianópolis e os desafios impostos no tempo presente. Minha ideia era produzir uma reportagem que, com o artigo, contextualizasse o tema a partir das graves violações dos direitos de moradores nas ocupações durante a pandemia. Não consegui dar conta da empreitada, mas o professor Canella sim. Ele também lançou, no dia 24 de novembro, o livro “Entre o local e a cidade: memórias e experiências de duas gerações de moradores da periferia urbana em Florianópolis (1990-2010)” (Ponta Grossa: Todapalavra, 2019, 334 páginas), obra preciosa para compreender todo esse processo.

O artigo de Canella, a seguir, levanta o contexto da época e atualiza a luta urgente pelo direito à moradia e à cidade.
 
30 ANOS DAS OCUPAÇÕES URBANAS EM FLORIANÓPOLIS: O LEGADO E OS DESAFIOS 

Por Francisco Canella - historiador 

Na madrugada fria de 28 para 29 de julho de 1990, um grupo organizado de sem-teto adentrava um terreno pertencente à COHAB, na área conhecida como Pasto do Gado. Em uma ação coordenada do movimento, os sem-teto chegaram juntos, e rapidamente limparam o terreno, demarcaram os lotes e ergueram barracas de lona. O movimento era formado por moradores empobrecidos da cidade que não conseguiam pagar seus aluguéis, migrantes que chegavam em busca de oportunidades (a maioria do Oeste do estado e do Planalto Serrano), desabrigados das enchentes do Vale do Itajaí. Homens e mulheres ocuparam a área reivindicando espaço para moradia – o direito à cidade. Na manhã seguinte, iniciaram a construção das casas de madeira. As ocupações urbanas revelaram para a cidade o problema da falta de moradia e de ausência de política habitacional, evidenciando as desigualdades de acesso à cidade. Essa ação, repleta de episódios onde irromperam emoções como coragem, medo e esperança, fez surgir a comunidade Novo Horizonte, e pode ser rememorada nos depoimentos da série Escritos em Movimento, coordenada pela jornalista Míriam Santini de Abreu (escritosemmovimento.blogspot.com).

Quatro meses depois, uma nova ocupação organizada acontecia em Florianópolis. De uma entrevista por mim realizada com Melita Marques, moradora do Mocotó que não tinha mais condições de pagar aluguel, tornando-se então sem-teto, extraio um depoimento que expressa o desafio que foi esse enfrentamento:

“Dez horas, depois das dez horas da noite, todo mundo de lanterna. Depois das dez horas da noite, a polícia veio. Era depois das oito, começaram a ver movimento... [...] Ia uma família por vez, né? Iam arrumar tudo direitinho. Pelo menos era o projeto, né? Quando gritaram: ´ou vocês ocupam agora ou nunca mais!` Ohh! Ali, ali embaixo, saindo da casa das irmãs do Prim, tinha uma vala, eu fui com um tênis novinho, que eu tinha comprado, um short azul que eu tinha vindo pra Palhoça pra pegar o caminhão... Já perdi meu tênis, teve um monte de gente caindo. Tinha uma vala que corria, aqui, assim, e eu tava aqui... lá, o meu canto era lá, tinha dentro da vala. [...] Chovendo, chovendo... Chuva pouca... chuva pouca, mas tinha chuva. [...] E ainda foi melhor que Novo Horizonte. Novo Horizonte foi no mês de junho, um frio que Deus me perdoe, dia 27 ou dia 28 de junho. Mas a nossa foi melhor. ´Ou agora ou nunca`, e aí todo mundo se amontoou, foi as freiras.”

Esses acontecimentos constituem-se como um marco na história de Florianópolis. Iniciava-se ali um novo bairro, o Monte Cristo. Além disso, novos atores irrompiam na cena da capital, trazendo experiências de mobilização e auto-organização até então desconhecidas na cidade que se pretendia pacata, provinciana, mas também paradisíaca (a capital turística do Mercosul, a Ilha da Magia).
 
Esse movimento que mudou a cara da cidade completou, em 2020, 30 anos. Cabe ressaltar que o Estatuto da Criança e do Adolescente, também no mês de julho, comemorou seus 30 anos de criação. Ou seja, era uma outra conjuntura política, o país vivia ainda o período da redemocratização e de lutas por direitos sociais, entre os  quais o direito à moradia. Como os anos redondos que fecham décadas sempre se prestam a reflexões, ficam as questões: o que mudou de lá para cá? Qual o seu legado? Como se configuram hoje as questões postas por esse movimento?
 
É possível dizer que aquela noite de 28 de julho se prolongou por vários meses, e suas consequências se fizeram sentir nos anos seguintes na vida política da cidade: além da ocupação da Novo Horizonte, o mesmo novembro que fez surgir a  Nova Esperança via acontecer, no Morro da Mariquinha, a ocupação da Parque Esperança.

Naquela conjuntura, tão diversa da atual, havia o apoio de amplos setores da cidade, desde redes de solidariedade ligadas à Igreja Católica, passando por associações de moradores, movimentos sociais como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, sindicatos e por assessorias voltadas à questão da moradia, como o Centro de Apoio e Promoção ao Migrante (CAPROM). Não foi à toa que em 1992 um candidato claramente identificado com esses movimentos sociais, Sérgio Grando, representante de uma Frente Popular, venceu as eleições para prefeito. Nesse mesmo pleito, uma liderança do movimento de luta por moradia, Lázaro Daniel, conquistou uma vaga na Câmara de Vereadores.

Os sem-teto enfrentaram as elites da cidade, construindo uma nova narrativa sobre Florianópolis: aquelas vozes que pretendiam um discurso único, de unanimidade em torno da “vocação turística da cidade” e os incontestáveis “benefícios para todos” dos seus megaempreendimentos, foram confrontadas pelos sem-teto com o direito à cidade. Suas ações e formas organizativas baseavam-se na união coletiva e num forte sentimento de comunidade. Práticas de autoconstrução, os mutirões, respondiam à ausência de recursos públicos para a habitação social, mas também reforçavam uma experiência de pertencimento coletivo e adensavam as relações de sociabilidade locais: festas, missas ecumênicas, encontros para resolver pequenos problemas locais marcaram a vida das localidades que se autodefiniam como comunidades.

Hoje, como resultado de um elevado déficit habitacional (em 2016 eram 15.800 inscritos no cadastro à espera de residência própria), vemos a luta pelo direito à moradia expandir-se para outros municípios da Grande Florianópolis, com várias ocupações em áreas públicas e privadas evidenciando a segregação urbana na cidade. Uma ocupação como a Amarildo de Souza, de 2013-2014, que propôs uma ocupação rural-urbana numa das áreas mais valorizadas do Norte da Ilha, duramente atacada pela mídia burguesa local, com os ocupantes acusados de “invasores”, teve o importante papel de denunciar para a cidade a apropriação privada de terras públicas.

Em tempos de pandemia, além da organização contra despejos, ações de solidariedade são realizadas pelos moradores das novas ocupações. O mesmo acontece nos bairros das periferias, muitos deles surgidos das lutas dos anos 1980/1990. Ao socorrerem, a partir do seu próprio esforço de mobilização, aqueles trabalhadores em áreas mais precárias e mais vulneráveis, mostram que a pandemia não é igual para todos, e o quanto é falacioso o discurso neoliberal de Estado mínimo. Essas ações revivem aquelas práticas coletivas que, décadas atrás, uniram os sem-teto na luta por uma cidade melhor. Passados 30 anos, a solidariedade e organização que cimentaram o movimento dos sem-teto se fazem, portanto, mais do que nunca necessárias. Esse é o principal legado daqueles que acreditaram e lutaram pela moradia como um direito de cidadania e à vida digna – o direito à cidade.

Francisco Canella é graduado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1987), tem mestrado em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina (1992) e doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2011). Atualmente é professor efetivo da Universidade do Estado de Santa Catarina. Autor do livro “Entre o local e a cidade: memórias e experiências de duas gerações de moradores da periferia urbana em Florianópolis (1990-2010)” (Ponta Grossa: Todapalavra, 2019, 334 páginas). 

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