quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Luta por Moradia: 10 Anos da Ocupação Amarildo de Souza


No sábado completam-se 10 anos da Ocupação Amarildo de Souza, que iniciou em 16 de dezembro de 2013, com cerca de 50 pessoas, em um terreno quase todo público na SC-401, no bairro da Vargem Pequena, Norte da Ilha de Santa Catarina, a cinco quilômetros de um dos bairros mais valorizados do país, Jurerê Internacional. Atualmente, graças à luta, está consolidado, em Águas Mornas, o Assentamento Comuna Amarildo de Souza. 

Naquele dezembro de 2013, depois de duas décadas de ocupações espontâneas em diferentes localizações e em terrenos menos valorizados de Florianópolis, os leitores, ouvintes e telespectadores da imprensa local acompanharam, durante oito meses, a cobertura jornalística daquela ocupação organizada, que irrompeu no cotidiano da capital catarinense tendo como lema “Terra, Trabalho e Teto” ao defender a reforma urbana e a reforma agrária e escancarar o déficit habitacional na cidade onde a classe dominante tem reservado para si as melhores localizações no espaço. Com o passar das semanas, a ocupação chegou a ter 725 famílias.

Uma particularidade da Ocupação Amarildo de Souza foi a trajetória que seus ocupantes fizeram em diferentes espaços da área conurbada de Florianópolis. Cada movimentação no espaço geográfico gerava novo ciclo de notícias e reportagens, que analisei em tese de doutorado. No total de edições com o tema na capa ou na contracapa, foram 15 no Diário Catarinense, então impresso, e 28 no Notícias do Dia. Aquela ocupação foi vítima de uma violência institucional e midiática sem precedentes antes e depois. 

Eu venho nos últimos anos pesquisando comunicação, ideologia e alienação urbana para compreender como o espaço aparece na cobertura jornalística.  Trabalho com a tese de que o jornalismo de crítica do cotidiano, comprometido com a emancipação humana, tem que necessariamente elucidar a experiência vivida no espaço. No jornalismo, essa experiência do vivido com o corpo, os sentidos, é sufocada por uma cobertura que privilegia o concebido sobre o espaço. Isso significa privilegiar, nas notícias e reportagens, as fontes que representam os poderes e discursam sobre o espaço, em vez das pessoas que na vida cotidiana experimentam as consequências de viver em cidades onde tudo é transformado em mercadoria. 

Uma noção que tem me ajudado a compreender essas coberturas é a de alienação urbana, que encontrei em um livro de 1987 do arquiteto espanhol Carlos Sánchez-Casas. Esse autor afirma que a alienação urbana se subjetiviza de três formas: como segregação em relação ao conjunto social; como dominação em relação ao meio institucional e como desorientação geográfica e estranhamento em relação ao meio físico. 

Na segregação, a pessoa experimenta o isolamento e a solidão. O conjunto social aparece como inacessível ou opressivo, e a vida do outro se mostra inalcançável, mesmo quando está espacialmente próxima.

Na dominação, a relação com o meio institucional perde toda a espontaneidade e se converte em uma representação mecânica das condutas exigidas pelas instituições cristalizadas, em que o homem intervém como coisa. A dominação também provoca a ideologização do conhecimento, aceitando como inevitáveis situações que são produtos de determinadas relações de poder. 

Na desorientação geográfica e estranhamento, se experimenta a incapacidade de vivenciar o meio como fonte de sentimentos. No espaço, a pessoa encontra-se perdida e desenraizada. 

Sánchez-Casas afirma que, em uma relação apropriada, o indivíduo se reconhece na realidade social através de qualquer um de seus elementos e como co-partícipe em sua construção, reconhecendo-a como sua obra. Ao contrário, na relação alienada, a realidade social se impõe ao indivíduo como algo alheio à sua vontade, como um fato impenetrável e opressivo. 

A partir dos governos de Temer e Bolsonoro e, em especial, na pandemia de Covid-19, se observou um processo em que populações com dificuldades de pagar aluguel se viram forçadas a buscar abrigo em ocupações urbanas, mas, desalojadas por remoções, enfrentam agora a situação de rua, buscando continuamente formas de sobrevivência. Para elas, a cidade paulatinamente encolhe, restando tendas, barracas e pisos de viadutos.

Nas coberturas jornalísticas da mídia hegemônica, muitas vezes as construções dos empobrecidos aparecem como desordem e depredação que destrói a paisagem. As instituições os oprimem ou são inacessíveis, a cidade em sua plenitude lhes é negada e, como já dito, nem no discurso jornalístico essas populações empobrecidas obtêm algum tipo de legitimação de sua luta por moradia, sendo sua existência rotulada como indesejável.

A cobertura de um episódio da Ocupação Amarildo de Souza – a chamada Batalha do Rio Vermelho, fato ocorrido no feriado da Páscoa em 2014 – pelo programa RIC Notícias foi uma das mais expressivas para mostrar esse processo. Nas notícias, percebe-se a violência das instituições e do discurso jornalístico e, ao mesmo tempo, os mecanismos de alienação urbana, tanto dos ocupantes, que sequer são ouvidos na reportagem, quanto dos moradores das proximidades do terreno no Rio Vermelho. Esses moradores, em uma das notícias que analisei, falam sobre o quanto sofrem para trabalhar, morar e comer, mas não se reconhecem na realidade de quem ocupou aquela terra pelos mesmos motivos. 

No dia 1º de dezembro, estive em um debate realizado na UDESC sobre as experiências das ocupações da última década, em especial a Ocupação Amarildo de Souza e a Ocupação Contestado, em São José, que completou 11 anos. Participaram também famílias da Ocupação Carlos Marighella e famílias despejadas do Vale das Palmeiras. No evento, foi lançado o site do OcupaSC, que também é um Observatório de Comunidades e Periferias de Santa Catarina. O evento foi uma iniciativa do LABGEF e Territórios Populares da FAED/UDESC, Instituto Caeté e OcupaSC, em parceria com as ocupações e organizações políticas que atuam junto a elas, com o apoio do Fórum da Reforma Urbana.

Foi um bonito momento de compartilhar experiências. Representando o Assentamento Comuna Amarildo de Souza, Daltro de Sousa rememorou emocionado a trajetória das famílias naqueles meses de 2013 e 2014: “São passos que vão sendo dados”, disse ele, e vem a ideia de que são mesmo muitos e duros os passos na luta pelo direito à moradia. Patrícia de Oliveira, moradora da Ocupação Contestado, falou sobre como, graças à organização, uma ocupação tem ajudado as outras a se fortalecer na Área Conurbada de Florianópolis. “Hoje meu mundo é muito maior”, disse Patrícia, que falou sobre o quanto a luta coletiva e organizada ampliou a sua compreensão da realidade. 

Acompanhei de perto a errância daquelas famílias entre 2013 e 2014 e, passada uma década, há que comemorar: Assentamento Comuna Amarildo de Souza, firme! 


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Economia Verde em Santa Catarina: muito discurso, pouca prática e mídia conivente

Os veículos de comunicação anunciaram de forma oficialesca o lançamento, em setembro, do documento intitulado “Uma abordagem preliminar da E...