O jornalismo tombou em Santa Catarina e todos os dias eu sofro duplamente por esse fato. A primeira, a falta que eu sinto do jornalismo; a segunda, a indiferença social perante o nosso fazer decaído.
Dias atrás, vi trecho de uma entrevista do ex-governador Carlos Moisés na qual ele fala sobre a atuação da imprensa no governo Jorginho Mello e define assim o cenário: “Isso aí é assustador. Parece que não é da República isso”, afirma, ao se referir ao fato de vários jornalistas antes em veículos de comunicação hoje se dedicarem à propaganda para o governo por conta de parcerias, convênios e contratos.
Quem, nos círculos de poder, toca nessa ferida supurada? FENAJ, Sindicato dos Jornalistas, Associação Catarinense de Imprensa?
As denúncias sobre o rio de dinheiro público que irriga as empresas de mídia hegemônica do estado são inócuas. Não repercutem também entre partidos e mandatos progressistas, centrais sindicais, sindicatos, movimentos sociais. E é dinheiro para fazer propaganda, e não jornalismo.
Nesta terça-feira, a Câmara Municipal de Florianópolis aprovou, em votação única, o Projeto de Lei que autoriza o município a privatizar espaços, ruas, praias e eventos na Capital, os chamados "naming rights". A mídia hegemônica local repercutiu, elogiou o modelo, ouviu a prefeitura já munida de perguntas vergonhosas para neutralizar a crítica e fim. A Assembleia Legislativa de Santa Catarina (ALESC) já havia permitido os "naming rights" em 2024. Uma década atrás, seria impensável não buscar ao menos uma fonte crítica ao projeto. A bancada de oposição na Câmara foi contrária, divulgou, mas as notas curtas de redes sociais caem no balaio das críticas ao prefeito Topázio Neto, outro irrigador de mídias que lhe interessam com dinheiro público. No final das contas, na avassaladora onda ultraliberal na prefeitura de Florianópolis e no governo do estado, ninguém produziu uma reportagem para explicar o problema de fundo dos "naming rights". E, se produzir, publicar onde?
A indiferença social impossibilita a construção de um projeto de jornalismo a serviço dos trabalhadores, com cobertura diária da vida da cidade. Assim, jornalistas como Maurício Frighetto, que comecei a acompanhar no Notícias do Dia das antigas, publicam excelentes reportagem em veículos de fora do estado, com na DW Brasil. E hoje mesmo li, na Agência Pública, reportagem denunciando que Jorginho Mello usou argumentos de uma auditoria paga por uma das maiores empresas de papel e celulose do país, a Klabin, para defender a exploração dos chamados campos de altitude, um ecossistema ameaçado da Mata Atlântica. Na dita imprensa hegemônica de Santa Catarina, somos diariamente espoliados desse bom jornalismo. Quem se importa?
Ontem encontrei por acaso e li o artigo “O direito à literatura”, de Antonio Candido. Ele afirma que pensar em direitos humanos tem um pressuposto: reconhecer que aquilo que consideramos indispensável para nós é também indispensável para o próximo. A partir de uma ideia do padre dominicano Louis-Joseph Lebret, o autor distingue os bens compressíveis (alimento, casa, roupa) dos bens incompressíveis (as coisas tidas como supérfluas).
É bela a construção de Antonio Candido sobre a obra literária e a fruição da arte e da literatura como direito inalienável. Diz ele: “Quer percebamos claramente ou não, o caráter de coisa organizada da obra literária torna-se um fator que nos deixa mais capazes de ordenar a nossa própria mente e sentimentos; e, em consequência, mais capazes de organizar a visão que temos do mundo”. O mesmo se pode dizer da obra jornalística como forma de conhecimento social com suas especificidades, como mostrou Adelmo Genro Filho em sua teoria marxista do jornalismo. Há que defender, então, o direito ao jornalismo.
Idealizador da ideia do direito à cidade, Henri Lefebvre, em artigo no livro “Du Contrat de Citoyenneté”, publicado em 1990, lista o que nomeia como “Os novos direitos do cidadão”. Entre eles estão o direito à informação e o direito à expressão. Diz Lefebvre que um cidadão não deve nem pode ficar calado sobre o que o preocupa e que lhe diz respeito, mesmo que apenas indiretamente: “Isso é muito: todos os assuntos da sociedade preocupam todos os membros. Daí o direito de refletir, de falar, de escrever”.
Tomada por esses sentimentos, fui dormir ontem pensando no jornalismo e no Vaqueirinho. Domingo passado, a notícia era que um homem havia morrido após o ataque de uma leoa. Mas a conselheira tutelar que o atendia há anos se manifestou, a imprensa foi atrás para reconstruir o fato e o homem então virou Gerson de Melo Machado, de 19 anos, o Vaqueirinho, e teve na morte direito a uma história que li em O Globo e na BBC News Brasil. Uma história que dá o que pensar sobre uma imensidão de mundos. Porque daquele jovem foi o que sobrou. Uma história contada por jornalistas. Um direito que nos é arrancado todo dia em Santa Catarina.

