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Foto: João de Deus Medeiros |
O assalto às terras públicas em geral, áreas de preservação permanente e unidades de conservação, com mudanças na legislação para legitimá-lo, sustenta esta reflexão sobre 1) crise climática, 2) meio ambiente e 3) o papel da classe trabalhadora em Santa Catarina. Compreender a relação entre as três realidades implica desvendar o violento exercício do poder fundiário, conceito desenvolvido pelo historiador Gert Schinke no livro “O poder e a terra: 500 anos de concessões de terras públicas em Santa Catarina”. O poder fundiário, afirma o autor, se traduz na capacidade de projeção de poder político-econômico por parte de pessoas, clãs familiares e grupos empresariais.
Falar em crise climática hoje é como
falar em desenvolvimento sustentável coisa de duas décadas atrás. É um
guarda-chuva que abriga desde discursos e ações radicais, a serviço da
emancipação humana, até o oposto, uma mera justificativa para a contínua venda
da natureza, como é o caso do bilionário mercado de compra e venda dos chamados
créditos de carbono. Enquanto abatem vidas e áreas inteiras mundo afora, os
efeitos da crise climática viram nicho de negócios diversificados.
Oportunidades de ampliar
lucros, como se verá na Conferência
das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, a COP30, em novembro (Belém -
PA),
Do mesmo modo, falar em meio ambiente
ou questão ambiental é aderir à politização em torno do discurso sobre a
natureza. As grandes empresas vendem “preocupações ambientais” para a imprensa
e os acionistas enquanto exploram e poluem a natureza e silenciam discursos
críticos. É preciso então desvendar o palavrório do capitalismo “verde” e
chegar às práticas, analisando aqui especificamente o caso de Santa Catarina.
Foi no estado que se potencializou uma conjunção de
forças políticas e econômicas que levou às alterações, em 2012, do Código Florestal Brasileiro. O grande
articulador do processo foi o então senador Luiz Henrique da Silveira, governador
de 2003 a 2010, tendo o Código Ambiental de Santa Catarina como um dos eixos da
campanha eleitoral de 2006. Reeleito, nos anos seguintes ele elaborou e aprovou
o Código, em 2009, ancorado no “Pacto Federativo como instrumento de
Desenvolvimento Sustentável com a União”. O Código mudou de novo, atropelando
debates necessários, em 2022, tendo uma série de artigos declarados
inconstitucionais pelo Tribunal de Justiça de SC em 2024 por fragilizarem a
proteção da Mata Atlântica.
Em 2025, mais uma vez, o Código está no centro do debate político
catarinense por causa da definição de onde começam os chamados Campos de
Altitude: se a 1.500 metros acima do nível do mar, como diz o Código, ou 400, como diz a
legislação federal. O assunto, bastante complexo, foi parar no Supremo Tribunal
Federal (STF) depois que o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis (Ibama) multou a empresa Klabin, com base na
legislação federal, por converter remanescentes de vegetação de Campos de
Altitude em plantios de pinus. Em julho, a revista científica Science,
uma das mais respeitadas do mundo, publicou artigo de pesquisadores de Santa
Catarina e do Rio Grande do Sul. Eles apontam que, entre 2008 e 2023, cerca de
50 mil hectares de Campos de Altitude foram convertidos para a plantação de pinus.
A mídia catarinense produziu notícias
vergonhosas, assumindo os argumentos dos representantes empresariais e do
governador Jorginho Mello (PL). Ele chegou a fazer um vídeo de quase nove
minutos direcionado ao STF e à Procuradoria Geral da República em defesa da
atuação do estado e das empresas no assunto. Por enquanto, estão suspensos
todos os processos judiciais que discutem a validade da norma prevista no
Código Estadual do Meio Ambiente.
Paralelo a isto, correm no Congresso
Nacional outros projetos que reduzem unidades de conservação, como o Projeto de
Lei 849/25, de deputada Geovania de Sá (PSDB-SC), atingindo a Área de Proteção
Ambiental da Baleia-Franca. Do mesmo modo, as áreas indígenas e quilombolas no
estado estão frequentemente na mira de interesses privados, a serviço do lucro
e com representações majoritárias nos legislativos municipais, estadual e
federal.
O afã de mudar a legislação aparece
também nos planos diretores, especialmente nas cidades litorâneas, em acelerada
verticalização, e na legislação sobre unidades de conservação municipais. Em Florianópolis,
uma Comissão Parlamentar Especial (CPE), criada para discutir a situação das
Unidades de Conservação (UCs) da capital, produziu um relatório preliminar de
46 páginas no qual se vê, camuflada sob um palavrório
legal, uma orquestrada tentativa de desconstituir essas unidades, com
argumentos já contestados em pareceres apresentados na Câmara.
O relatório cita 11 UCs municipais, indica
que representam 33% da área terrestre do município e afirma: “... há vícios
jurídicos, administrativos e orçamentários substanciais no processo de
instituição e gestão das Unidades de Conservação Municipais em Florianópolis”.
Ao final, lista encaminhamentos e recomendações, sendo uma “medida imediata” a
“suspensão dos efeitos dos decretos que criaram UCs sem observância do devido
processo legal, até a regularização de seus vícios através de decreto legislativo”. A palavra “propriedade” aparece 27
vezes no relatório; “mudanças climáticas”, uma vez. É a mesma Câmara que, em
2023, por maioria, aprovou o Plano Diretor, a atual Lei Complementar 739/2023,
atropelando a legislação para favorecer interesses empresariais na lógica da
cidade-mercadoria.
Não é de hoje que os grupos dominantes
se beneficiam de forma fraudulenta das terras em Santa Catarina. Na obra “O
golpe da ‘Reforma Agrária’ – fraude bilionária na entrega de terras em Santa
Catarina”, de 2017, o autor, Gert Schinke, através de extensa pesquisa nos
arquivos do extinto Instituto de Reforma Agrária de Santa Catarina (IRASC), que
funcionou entre as décadas de 1960 e 1970, comprova que, dos cerca de 16 mil
títulos de propriedade entregues pelo órgão no estado, em torno de 11.200
poderiam ser considerados no mínimo irregulares pelos critérios que legalmente
davam base para a reforma agrária.
Em vez de serem entregues
prioritariamente a camponeses, posseiros e pescadores, como previa a lei, as
terras foram concedidas a militares, funcionários públicos, empresários
pecuaristas e profissionais liberais. Tratou-se de uma fraude fundiária
efetivada sob o manto de uma suposta reforma agrária.
Essa crua realidade é silenciada pela
mídia hegemônica, que aplaude iniciativas como o “Abril Amarelo”, do governador
Jorginho Mello, lei aprovada na Assembleia Legislativa para “promover campanhas
de conscientização quanto a comunicação das autoridades policiais no caso de
avistar movimentações de invasão de propriedades privadas” e “conscientizar a
população sobre a importância da união de proprietários de terra, produtores
vizinhos, amigos e família para montar acampamento permanente para evitar a
invasão”. Os mecanismos ideológicos – inverter, naturalizar, ocultar e
apresentar interesses particulares como se fossem universais – tratam como
crime o desespero dos despossuídos por terra e moradia enquanto tentam soterrar
no passado a memória das terras usurpadas via antigo IRASC.
QUEM SE PREOCUPA COM A CRISE CLIMÁTICA?
O Tribunal de Contas de Santa Catarina
(TCE/SC) determinou, em abril, a realização de um novo processo de
acompanhamento da execução orçamentária e financeira da Defesa Civil do estado
para o ano de 2025. O motivo: considerável sobra de recursos quando comparados
os investimentos previstos com os valores utilizados. Na mitigação, prevenção e
resiliência para a redução de riscos de desastres, por exemplo, foram
usados apenas R$ 30 mil de R$ 3,11 milhões (0,96%). Em educação continuada
em proteção e defesa civil e na ampliação, modernização e melhoria da rede de
monitoramento e alerta, o índice foi de 0%.
Detalhe: Santa Catarina é o estado que
mais emitiu decretos de calamidade
pública (ao menos 4 mil) de 2013 a 2023, segundo a Confederação Nacional dos
Municípios. Nesse período, foram
registradas 148 mortes em decorrência de situações climáticas. Quase 57 mil
pessoas ficaram desabrigadas e ao menos 450 mil foram desalojados por algum
tipo de desastre. Tal realidade, porém, aparece publicamente desconectada da crise
climática.
A Frente Parlamentar para o
Fortalecimento da COP30 na Assembleia Legislativa tem reuniões frequentes, mas
ainda não apresentou os termos do documento que será levado ao evento. As
entrevistas do deputado Mauro de Nadal (MDB), que preside a Frente, levam a
crer que a tônica será a defesa do modelo do agronegócio e da pequena
propriedade rural catarinense, que, segundo ele, é produtiva e protege o meio
ambiente. O próprio objetivo da frente é ampliar o debate sobre como conciliar
sustentabilidade ambiental e produção agropecuária, ou seja, a crise climática
não é o centro das preocupações.
A Comissão de Meio Ambiente e
Desenvolvimento Sustentável está promovendo
audiências regionais para ampliar a participação da sociedade na COP30 e
levantar propostas e sugestões de
diversos segmentos da população catarinense. A divulgação das audiências já
realizadas, porém, até agora é genérica e não ajuda a compreender os dilemas de
cada região. Isso a menos de um mês e meio do início da COP30. Os jargões –
desenvolvimento sustentável, sustentabilidade – vão constituindo o discurso e
substituindo um vocabulário vivo sobre as realidades regionais.
O PAPEL DA CLASSE
TRABALHADORA
Pesquisas do DIEESE/SC e do Núcleo de
Estudos de Economia Catarinense (NECAT/UFSC) trazem uma série de informações
sobre o perfil da classe trabalhadora catarinense. Para este artigo, interessa
apenas apresentar alguns fatos para pensar nas formas de enfrentar a realidade
já posta.
A classe trabalhadora não tem, em Santa
Catarina, um sistema de comunicação que represente seus interesses. Rádios,
tevês, jornais, portais, são dominados por empresários e mantidos
prioritariamente com dinheiro público, como mostram os repasses mensais feitos
a eles pelo governo do estado, Assembleia Legislativa e prefeituras. Os poucos veículos independentes não chegam à
maioria da população, que pouco ou nada sabe da rotina de desmandos que potencializa as tragédias
climáticas. Desgraça concretizada, sobram para Deus ou a chuva. Desmontar a ideologia que impede a
compreensão da natureza como mercadoria sob o capitalismo exige investimento em
jornalismo por parte de sindicatos e movimentos populares em geral, que
precisam se unir para viabilizar a visibilidade pública de suas lutas.
Outra medida é cobrar, das
universidades públicas catarinenses, a produção de pesquisas necessárias para investigar
e expor os impactos da crise climática no estado,
cumprindo sua função social. Em Florianópolis, por exemplo, movimentos estão se
mobilizando para barrar a verticalização meramente especulativa e sem
compromisso com a moradia como direito, com infraestrutura e serviços
adequados, como na Armação, Pântano do Sul e Campeche. A pesquisa acadêmica
precisa estar a serviço também destas demandas.
De modo geral, os espaços de
participação são cada vez mais estreitos. Um exemplo foram as Audiências
Públicas do Plano Diretor em Florianópolis em 2022/23. Muita gente
falando, ninguém anotando e pouco ou nada do que foi dito apareceu no documento
final. Mas a realização por si só de Audiências mal convocadas passa por
participação popular quando a prefeitura defende seus interesses e os dos
grupos dominantes. Quem é do movimento popular e atua nos chamados Conselhos de
Direitos, onde deveria se concretizar a participação social prevista na
Constituição Federal, também já percebeu que a energia gasta neles serve mais
para referendar abusos e ilegalidades.
Por isso, os mandatos populares,
minoria nas Câmaras e na Assembleia Legislativa, precisam ampliar espaços de
fiscalização, denúncia e formação. Hoje, esses mandatos também caem na lógica
do “caça cliques” e da “lacração” nas redes sociais, onde tudo é efêmero. Porém,
há que planejar ações para além da lógica imediatista imposta pelos algoritmos.
É como aponta Eduardo Sá Barreto:
investir em formação, denúncia e agitação, radicalizando as pessoas em luta:
‘Fazê-lo de maneira intencional e metódica, não de maneira entregue ao
acaso ou à esperança de uma elevação geral espontânea de consciência da
classe”.
O poder fundiário usa de coação e
coerção todos os dias, no campo e na cidade, para manter seus privilégios. Não
é pelas redes sociais que será derrotado.
Para leitura:
BARRETO, Eduardo Sá. Pequeno
guia para a crítica ecossocialista do capitalismo. Marília/SP: Lutas
Anticapital, 2025.
MEDEIROS, João de Deus. Campo de Altitude como
Ecossistema Associado do Bioma Mata Atlântica. Conselho Regional de Biologia 9ª Região – SC. Disponível em: https://apremavi.org.br/parecer-alerta-para-riscos-na-restricao-de-protecao-dos-campos-de-altitude-em-santa-catarina/
. Acesso em: 10 set. 2025.
NOROEFÉ, Vitor Hugo. Geógrafa critica privilégios da discussão
ambiental. Brasil de Fato.
Disponível em: https://sosriosdobrasil.blogspot.com/2014/06/criticas-serias-da-geografa-maria.html. Acesso em: 10 set. 2025.
SCHINKE, Gert. O “poder fundiário” no Plano Diretor Participativo de
Florianópolis. In: PERES, Lino Fernando Bragança. Confrontos na cidade:
luta pelo plano diretor nos 20 anos do Estatuto da Cidade. ITCidades; Arq/UFSC:
2022. Disponível em: https://ldarq.paginas.ufsc.br/files/2022/03/ConfrontosnaCidade-vrtl.pdf. Acesso em: 10 set. 2025.