segunda-feira, 13 de outubro de 2025

Jornalismo Ambiental: totalizar os resíduos

 

Ato no Sul da Ilha de Santa Catarina contra a verticalização - Milton Ostetto



A realização no Brasil da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, a COP30, no mês de novembro em Belém (PA), não pegou desprevenido o jornalismo especializado na área no país. São décadas de acúmulo teórico, criação de veículos especializados, debates, articulação em rede, produção de importantes coberturas jornalísticas. Pesquisadora do tema desde o final dos anos 1990, vim alinhavando impressões nos últimos anos e concluí que ainda há coisas a dizer sobre o chamado jornalismo ambiental.

Do ponto de vista do jornalismo em geral, este artigo toma o papel da imprensa tradicional/hegemônica como o de manutenção da ordem social e, em contrapartida, o da imprensa independente/alternativa/contra-hegemônica como o de crítica a esta ordem para a construção de outro modo de organização social. O fato é que as formas de nomear os novos arranjos ou experiências de jornalismo são inúmeras e as pesquisas mostram que a imprensa independente/alternativa/contra-hegemônica pode, muitas vezes, reproduzir rotinas de trabalho e de fazer jornalísticos semelhantes às da imprensa tradicional/hegemônica.

Mas a imprensa independente/alternativa/contra-hegemônica tem mais potencial do que a tradicional/hegemônica para, pelo jornalismo, produzir conhecimento capaz de elucidar criticamente a relação entre sociedade e natureza no texto jornalístico, noção que costumo adotar em minhas reflexões sobre o chamado jornalismo ambiental. É nesta perspectiva que o artigo adota, doravante, a expressão jornalismo/imprensa independente.

As considerações a seguir são voltadas para a imprensa independente especializada no jornalismo ambiental, não cabendo para o jornalismo informativo e opinativo sobre temas ambientais circulando na imprensa tradicional (com mais ou menos elementos característicos do jornalismo ambiental) por esta mover-se pela lógica da notícia como valor de troca, como mercadoria.

O conjunto de profissionais que se identificam com o jornalismo ambiental atua na imprensa tradicional, independente, em assessoria de organizações ambientais,  agências de notícias, universidades, institutos de pesquisa, freelancers. Toma-se como pressuposto que esses profissionais corroboram, no geral, os princípios do jornalismo ambiental geralmente adotados em pesquisas acadêmicas no país:

 

Assim, para que uma reportagem seja considerada Jornalismo Ambiental deve apresentar algumas das seguintes características: mostrar uma visão sistêmica dos fatos; dar conta da complexidade dos eventos ambientais; contemplar a diversidade dos saberes e não ser refém de fontes oficiais; defender a biodiversidade e a vida em sua plenitude, o que significa deixar de ser imparcial; assumir seu papel educativo, cidadão e transformador. Tais aspectos também podem ser contemplados ao longo de uma série de reportagens (GIRARDI, p. 19-20)

 

Publicação do ICFJ (International Center for Journalists) sobre o jornalismo ambiental na América Latina e no Caribe destaca as seguintes características:

 

Características del periodismo ambiental.

• Es periodismo de investigación.

• Utiliza la ciencia para explicar problemáticas y fenómenos.

• Fomenta la cultura ecológica.

• Alerta oportunamente a la sociedad sobre las consecuencias de daños ecológicos.

• Documenta iniciativas y proyectos sustentables/ecológicos.

• Tiene riqueza de fuentes de información.

• Señala alternativas y posibles soluciones de un conflito ecológico.

• Da voz a la naturaleza, los animales, el paisaje.

• Utiliza un lenguaje creativo, informa sin ser aburrido (ICFJ, 2018, p. 6).

 

Minhas pesquisas se movem pela teoria marxista de jornalismo de Adelmo Genro Filho (1989), que compreende o conhecimento como práxis – uma atividade de mútua produção entre sujeito e objeto – e a realidade social como totalidade. Para construir sua teoria do jornalismo, Genro Filho se alicerça nas categorias filosóficas do singular, particular e universal erigidas por G. Hegel e usadas na teoria de G. Lukács sobre a arte. Sustentando-se nesses autores, Genro Filho acentua que existe uma relação dialética entre as três categorias (singular, particular e universal). Cada um dos conceitos expressa as diferentes dimensões que compõem a realidade e, ao mesmo tempo, compreende em si as demais.

O aparecimento histórico do jornalismo, para o autor, “[...] implica uma modalidade de conhecimento social que, a partir de um movimento lógico oposto ao movimento que anima a ciência, constrói-se deliberada e conscientemente na direção do singular” (GENRO FILHO, 1989, p. 160). Em termos mais concretos, o aspecto central do jornalismo como gênero de conhecimento é “(...) a apropriação do real pela via da singularidade, ou seja, pela reconstituição da integridade de sua dimensão fenomênica” (GENRO FILHO, 1989, p. 58, com grifo no original).

Um aspecto fundamental da teoria de Genro Filho é a relação que ela tem com a emergência do novo e a possibilidade que o jornalismo tem de apreendê-lo na linguagem articulando fatos singulares (únicos, irrepetíveis) às dimensões filosóficas do particular e do universal, aspirando à totalidade. Na discussão sobre os fenômenos e acontecimentos que povoam o cotidiano, o autor ressalta que ambos “(...) precisam ser percebidos como processos incompletos que se articulam e se superpõem para que possamos manter uma determinada ‘abertura de sentido’ em relação a sua significação” (GENRO FILHO, 1989, p. 36). No jornalismo, isso implica perceber o novo na vida social e estar atento à sua irrupção na vida cotidiana.

Por isso, tenho trabalhado, como já dito, a relação entre sociedade e natureza no texto jornalístico em sua totalidade, no entendimento de que tal relação deve ser intrínseca ao jornalismo de crítica da vida cotidiana e a serviço da desalienação e da emancipação humana, independentemente de editorias e especializações.

Mas, à medida que se consolida como especialização, o jornalismo ambiental se expressa no fazer jornalístico na imprensa (tradicional e independente) e no fazer acadêmico (cursos, disciplinas, pesquisas, projetos, editais, livros, eventos), uma alimentando-se da outra. A observação e análise das duas vertentes, no campo do jornalismo ambiental brasileiro na imprensa independente, permitem as observações a seguir:

 

1 – Perspectiva anticapitalista

 

O jornalismo ambiental brasileiro precisa se mover na perspectiva anticapitalista como horizonte de atuação. Ainda que parte dos jornalistas ambientais também se assumam como militantes ambientalistas, a cobertura jornalística no geral caminha mais pelo ambientalismo crítico do que pelo ecossocialismo. Tomando a imprensa como instrumento de um projeto político, a falta também deriva da realidade do campo político-partidário brasileiro, em que a perspectiva anticapitalista é minoritária e, quando explicitada, necessariamente não tem a relação entre sociedade e natureza como pauta prioritária; se tem, é uma pauta muitas vezes alinhada com soluções capitalistas, como a aposta no mercado de carbono, ou afirmada em discursos genéricos como o da sustentabilidade.

Sem essa perspectiva, contra o quê e em que termos luta e se posiciona o jornalismo ambiental brasileiro? O impasse pode ser melhor compreendido no debate, por exemplo, sobre a transição energética. Essa transição, afirma Barreto (2018; 2024), é impossível nos marcos da sociedade capitalista, que produz necessariamente a tragédia ambiental contemporânea.

A cobertura jornalística das mudanças climáticas e desastres climáticos, atualmente já constituindo mais um nicho acadêmico e de atuação profissional, o chamado jornalismo climático, tem estreita relação com a transição energética, e é certo que pautas com e sem perspectiva anticapitalista levam a rumos diferentes de abordagens e fontes. Há então que, no jornalismo ambiental, desmontar a naturalização do capital e seus limites de estratégias para redução de impactos e de adaptação às mudanças climáticas e priorizar abordagens e fontes na perspectiva apontada pelo autor, de “radical subversão da lógica do capital e de todo o ordenamento social que a ela corresponde” (BARRETO, 2018, p. 20).  Barreto assinala que o projeto de uma nova sociedade deve vir acompanhado de uma reconfiguração maciça da estrutura produtiva e dos hábitos de consumo. definida e hierarquizada segundo critérios coletivamente estabelecidos (2018, p. 213), sendo esses, portanto, dois potenciais caminhos para a produção de pautas e coberturas jornalísticas.

 

2 – Jornalismo de classe

           

A perspectiva anticapitalista deve estar amarrada a outra, a de classe, na senda da crítica de Guimarães (2015). A partir da perspectiva gramsciana, a autora critica o jornalismo hegemônico e aponta caminhos para o contra-hegemônico, erodindo as bases de sustentação do moderno jornalismo para mostrar como o jornalismo contra-hegemônico pode constituir uma prática efetivamente a serviço da emancipação humana. Para o enfrentamento da hegemonia no campo da imprensa, Guimarães sugere ao jornalismo que se pretende contra-hegemônico um deslocamento necessário na função do jornalismo: 1) do esclarecimento para a construção da consciência, e 2) da mudança do sujeito para quem essa prática deve se voltar, movendo-se do indivíduo para a classe (2015, p. 231).

A função contra-hegemônica possível de ser exercida por uma imprensa que se quer alternativa é o esforço de fazer aflorarem as contradições, desvelar a ideologia, expor aquilo que, de outro lado, no contexto do capitalismo, encontra-se nublado e invertido. É um movimento de dar unidade e coerência ao que, no jornalismo hegemônico, aparece fragmentado e caótico, enfrentando assim a heterogeneidade própria do cotidiano. Portanto, não basta a denúncia da manipulação promovida pela comunicação hegemônica. Há que desvendá-la por dentro da lógica de sua narrativa.

O jornalismo contra-hegemônico tem então a função primordial de pensar a realidade em sua totalidade, no esforço “(...) de desideologização, de desvelamento, daquilo que, de outro lado, no contexto do capitalismo, encontra-se nublado e invertido” (GUIMARÃES, 2015, p. 23, com grifos no original). A ideologia, afirma Silva, “(...) é, fundamental e essencialmente, um modo de ver a realidade social que não contempla senão a aparência dos processos, seu modo de manifestar-se exteriormente, e oculta – sabendo-o ou não – o caráter profundo, estrutural do processo” (SILVA, 1971, p. 64).

É necessário, portanto, que esse caráter estrutural do processo, no caso da luta ambiental, seja continuamente enunciado pelo jornalismo ambiental, sem filtros, com a maior precisão e rigor possíveis, no caminho do papel que Barreto atribui aos ecossocialistas (BARRETO, 2025, p. 114).

É um jornalismo que deve caminhar na concepção filosófica de Enrique Dussel, criador da Filosofia da Libertação, que inspirou a proposta de jornalismo libertador, conceito apresentado por Tavares (2004), pelo qual o foco do jornalismo volta-se para a comunidade das vítimas do sistema, tal qual propõe Dussel. A narrativa deve ser cristalizada no singular, evocando o universal, mas priorizando dar visibilidade à vida do oprimido, saindo assim de uma forma de praticar jornalismo que se alimenta apenas ou prioritariamente de fontes oficiais. O jornalismo, afirma Tavares (2004, p. 24), é serviço público, e só podem existir dois tipos de jornalismo: o que serve a uma minoria dominante (moral de dominação) e o que serve aos oprimidos, maioria da população (ética da libertação).

 

3 – Projeto cooperativo nacional e internacional

 

Com o papel estratégico do Brasil no cenário latino-americano e caribenho, cabe ao jornalismo ambiental brasileiro avançar na construção de um projeto cooperativo nacional e internacional. Pautas comuns não faltam: a Amazônia se estende por nove países; o Aquífero Guarani, por quatro; uso de agrotóxicos; poluição do ar e da água; devastação de florestas. De tão ou maior importância seria mapear e visibilizar os movimentos de resistência/insurgência no continente.

A imprensa tradicional/hegemônica faz pouco e mal esta cobertura, além de criminalizar a luta social, como é caso da luta por terra. Para além da discussão de nichos conceituais (jornalismo ambiental, jornalismo climático, comunicação ecoterritorial), muitas vezes de definição imprecisa e cabível a outras especializações jornalísticas, o caminho é consolidar parcerias que potencializem a difusão de coberturas jornalísticas importantes.

Na disputa global por recursos de toda ordem, o jornalismo contra-hegemônico ganha ao se mover por um pensamento estratégico firmado no princípio da soberania e em uma visão de futuro do longo prazo, direção apontada por Bruckmann (2012, p. 23).

Isso coloca em centralidade a terra, em sua fecundidade natural, gerando materialmente a riqueza fundamental, o "valor de uso" primigênio, primeiro, como diz Dussel. Sem as chamadas coisas "naturais", o homem não poderia realizar nenhum trabalho. Finalmente, todo trabalho é transformação (mudar a forma) desta matéria parida pela terra (DUSSEL, 1986, p. 215).


4 – Ensino do saber que importa

 

Dois fatos se entrecruzam no debate sobre o ensino do jornalismo. O primeiro é que, com o fim da exigência do diploma para o exercício profissional, pessoas com formação em diferentes áreas estão produzindo notícias e reportagens (jornalismo informativo). Antes do fim do diploma, a situação era mais comum na produção de artigos e colunas (jornalismo opinativo). Olhares de diferentes disciplinas são importantes, mas há o risco de a produção jornalística informativa, com toda a sua riqueza conceitual e técnica (entrevista, narração, descrição) perder espaço para a produção opinativa, na qual predomina a análise e não o corpo a corpo com a vida, título de um clássico ensaio de João Antônio sobre o jornalismo.

O segundo fato é que mesmo a graduação em jornalismo não garante a formação necessária para compreender e narrar a problemática relação entre sociedade e natureza, e a crítica não cabe apenas ao jornalismo. A clássica obra de Álvaro Vieira Pinto “A questão da universidade” destaca o papel da universidade como porta de entrada na compreensão do processo geral da nossa realidade. Mas tanto na década de 1960, quando o livro foi escrito, quanto na atualidade, “... a universidade é uma peça do dispositivo geral de domínio pelo qual a classe dominante exerce o controle social, particularmente no terreno ideológico, sobre a totalidade do país” (1994, p. 19). 

O autor afirma que a classe dominante solicita da universidade acima de tudo ideias que justifiquem seu poderio (p. 25), funcionando como anteparo destinado a ocultar a realidade do país à sua própria consciência (p. 35), um “templo” que não sabe o saber que importa (p. 43).

Reflito sobre a obra de Vieira Pinto à luz da crítica de Barreto à economia das mudanças climáticas, que traz considerações importantes para refletir sobre o ensino e a prática do jornalismo na relação entre sociedade e natureza. Segundo o autor, as respostas do pensamento econômico e das políticas climáticas são “extensamente mapeadas, não por encontrarmos nelas reflexões fecundas, mas por encontrarmos ali as formas dominantes nas quais a humanidade vem se mobilizando diante do desafio” (BARRETO, 2018, p. 19).

As formas dominantes vêm na esteira da naturalização do capital e cabe, a quem ensina jornalismo, desnaturalizar, elucidar essa lógica em qualquer disciplina. Mas o ensino do jornalismo, também vitimado pelo parcelamento da ciência e na linha da crítica de Vieira Pinto, de modo geral não está comprometido com uma educação totalizante e com o saber que importa. O ensino das técnicas predomina, assim como as exigências, sempre voláteis, do mercado. O Ministério da Educação (MEC) divulgou em setembro de 2025 que o número de alunos em graduação à distância passou, pela primeira vez, o de cursos presenciais. Este é mais um elemento a ser levado em conta na reflexão sobre o distanciamento da universidade da vida social e, cada vez mais, da vida do estudante em sua completude, inclusive física.

Bakhtin (1990), ao analisar a obra do escritor F. Rabelais, diz que um dos motivos de sua força estava no fato de o autor sair das vizinhanças habituais e construir vizinhanças inesperadas. Ao ensino do jornalismo cabe fazer o mesmo, sair das vizinhanças habituais e procurar vizinhanças inesperadas, ou seja, contribuições de outras áreas de conhecimento. O parcelamento das ciências fragmenta o cotidiano, impedindo que ele seja compreendido em sua totalidade. O ensino do jornalismo, ao abrir mão de seu potencial crítico, faz o mesmo.

 

5– O papel do cotidiano

 

O jornalismo ambiental cerca para si um conjunto de temas, mas rotular pode fazer crescer o risco de deixar abordagens importantes de fora. Em 2021, um grupo de cientistas publicou artigo no International Journal of Disaster Risk Reduction (LIZARRALDE et al, 2021) explorando como cidadãos e líderes explicaram os desastres climáticos na América Latina e no Caribe e se os relacionaram às mudanças climáticas. Eles encontraram cinco narrativas diferentes, incluindo uma em que os cidadãos acreditam que as mudanças climáticas são uma "condição que distrai autoridades e pessoas de outros desafios diários imediatos, como violência, criminalidade, desemprego, insegurança alimentar e falta de infraestrutura". 

Em um dos lugares pesquisados, Salgar (Colômbia), uma cidade nas montanhas da região de Antioquia, moradores que vivem em ambientes informais disseram estar mais preocupados com as lutas diárias, como desemprego, violência, criminalidade e insegurança alimentar, do que com os efeitos das mudanças climáticas. Muitos deles argumentaram que os efeitos climáticos tendem a ocorrer apenas em países ricos. No entanto, eles se mostraram preocupados com os problemas ambientais locais. É o cotidiano se insurgindo contra as limitações da pauta ambiental.

No senso comum, cotidiano é o que ocorre todos os dias, o banal, o corriqueiro, o repetitivo. Mas nele também nasce a ruptura, a possibilidade de transformação social. A tensão constante entre repetição/transformação faz do cotidiano uma categoria de longa tradição em diferentes correntes sociológicas. Em minha tese de doutorado, desenvolvo a tradição marxista e mostro como o jornalismo de crítica do cotidiano elucida a experiência vivida no espaço, sendo este o caminho para ampliar a cobertura dos temas da chamada questão (e sua pauta) ambiental (ABREU, 2019).

 

6-Jornalismo ambiental: totalizar os resíduos

 

Para dar um rumo apropriado ao que foi desenvolvido até agora, a síntese é esta: o papel do jornalismo ambiental é totalizar os resíduos, concepção que trago da obra de H, Lefebvre. Ele dá o nome de poiésis a toda a atividade humana que “(...) se apropria da ‘natureza’ (physis) em torno do ser humano e nele (sua própria natureza: sentidos, sensibilidade e sensorialidade, necessidades e desejos, etc.)” (LEFEBVRE, 1967, p. 64, com grifos no original). É, portanto, criadora de obras: “Compreende fundações, decisões de consequências ilimitadas, embora às vezes despercebidas durante longos períodos” (LEFEBVRE, 1967, p. 64-5).

Para Lefebvre, a poiésis parte do residual, do que ele denomina resíduo. O autor afirma que cada atividade que se autonomiza tende a constituir-se em sistema, em “mundo”, o qual acaba por expulsar, indicar, o resíduo. O resíduo é o que escapa, o que resiste, e de onde pode partir uma resistência efetiva e prática (LEFEBVRE, 1967, p. 68 e 373). A religião, como poder, constitui como resíduo a vitalidade (natural, carnal); a filosofia constitui como resíduo o não-filosófico (o cotidiano, o lúdico). E assim continua: o político, a vida privada; a burocracia, o individual; a significação (signo, significante, significado), o insignificante. Para Lefebvre, é preciso “(...) detectar os resíduos – neles apostar – mostrar neles a preciosa essência – reuni-los – organizar suas revoltas e totalizá-los. Cada resíduo é um irredutível a apreender novamente” (LEFEBVRE, 1967, p. 375-6).

À poiésis cabe então reunir os resíduos depositados pelos sistemas que tentam acuá-los e exterminá-los: “Promover um resíduo, mostrar sua essência (e seu caráter essencial), contra o poder que o oprime e o patenteia tentando oprimi-lo, é uma revolta. Reunir os resíduos é um pensamento revolucionário, um pensamento-ação” (LEFEBVRE, 1967, p. 376). Apostar neles “(...) por um ato poiético inaugural, reuni-los em seguida na práxis, erguê-los contra os sistemas e as formas adquiridas, tirar deles novas formas, é o grande desafio” (LEFEBVRE, 1967, p. 378). Essa aposta comporta, diz o autor, a ideia de que nada é eterno nem completamente durável:

 

Não apenas os resíduos são o mais precioso, mas roem, destroem por dentro, fazem explodir os sistemas que querem absorvê-los. Nesse sentido, a poiésis, que deles se apodera, deve revelar-se criadora de objetos, de atos e, mais geralmente, de situações (LEFEBVRE, 1967, p. 377). [Com grifo no original]

 

 

Uma revolução, dizia Lefebvre, para realizar todo seu potencial, precisa gerar efeitos na vida cotidiana, na linguagem e no espaço. Para isso, ele reclamava uma invenção, uma poiésis, uma fala criadora, que limitasse as “pretensões ilimitadas da mercadoria” e do seu mundo (o dinheiro) e também não as substituísse “(...) por sujeições ‘superiores’ e pelos valores da moral e da política” (LEFEBVRE, 1966, p. 337).

O jornalismo que se propõe a fazer a cobertura crítica da relação sociedade-natureza deve estar então a serviço do conjunto de resíduos, tomados como insignificantes pela filosofia, como assinala Lefebvre, como conjunto do pseudo-nada, do Não-Valor, daquilo que não tem mais valor: “(...) o quotidiano, a palavra incerta, a situação equívoca, a ambiguidade” (LEFEBVRE, 1967, p. 377).

Há, na vida cotidiana, um conjunto de resíduos continuamente acossados pelos sistemas de poder por neles germinarem alternativas que confrontam esses sistemas. Na sociedade atual, o cotidiano é cuidadosamente programado e assim se mantém por coações e opressões de todo o tipo, e as insurgências, o não programado, o impossível de controlar, são duramente combatidos. Nessa perspectiva, reunir os resíduos e neles apostar é um pensamento revolucionário, um pensamento-ação, como diz Lefebvre, e nisso o jornalismo tem um papel fundamental.

O jornalismo ambiental precisa estar a serviço da elevação da consciência, ser “uma forma de fustigar a brasa insurrecional”, como afirma Barreto ao se referir aos esforços necessários por parte dos ecossocialistas, que devem investir em formação, denúncia e agitação, radicalizando as pessoas em luta: “Fazê-lo de maneira intencional e metódica, não de maneira entregue ao acaso ou à esperança de uma elevação geral espontânea de consciência da classe”. A formulação é perfeita também para o jornalismo que se põe a serviço da emancipação humana.

 

Referências

ABREU, Míriam Santini de (2019). Espaço e cotidiano no jornalismo: crítica da cobertura da imprensa sobre ocupações urbanas em Florianópolis. (Tese de Doutorado). Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis (SC). Disponível em: https://tede.ufsc.br/teses/PJOR0134-T.pdf. Acesso em: 15 set. 2025.

ANTÔNIO, João. Malhação do Judas carioca. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.

BAKHTIN, Mikhail. Formas de tempo e de cronotopo no romance (Ensaios de poética histórica). In: BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética (a teoria do romance). São Paulo: Unesp; Hucitec, 1990, 2ª ed., pags. 211 a 362

BARRETO, Eduardo Sá. O capital na estufa: para a crítica da economia das mudanças climáticas. Rio de Janeiro: Consequência, 2018.

BARRETO, Eduardo Sá. Pequeno guia para a crítica ecossocialista do capitalismo. Marília (SP); Lutas Anticapital, 2024.

BRUCKMANN, Mônica. Recursos naturales y la geopolítica de la integración sudamericana. Lima (Peru): Instituto de Investigaciones Sociales Perumundo; Fondo Editorial J.C. Mariátegui, 2012.

DUSSEL, Enrique. Ética comunitária. Petrópolis: Vozes, 1986.

Genro Filho, Adelmo. O segredo da pirâmide: para uma teoria marxista do jornalismo, Porto Alegre: Tchê, 1989.

GIRARDI. Ilza Maria Tourinho. In: GIRARDI, Ilza Maria Tourinho et al. Jornalismo ambiental: teoria e prática. Porto Alegre: Metamorfose, 2018. Disponível em: https://jornalismoemeioambiente.com/wp-content/uploads/2018/09/jornalismo-ambiental-teoria-e-prc3a1tica2.pdf. Acesso em: 24 ago. 2025. 

ICFJ. Periodismo Ambiental em América Latina y el Caribe: Botiquín de Superación. 2019. 

GUIMARÃES, Cátia Corrêa. Jornalismo e luta de classes: desvendando a ideologia do modelo informativo na busca da contra-hegemonia. Tese apresentada à Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2015. 

LEFEBVRE, Henri. A linguagem e a sociedade. Lisboa: Ulisseia, 1966. 

LEFEBVRE, Henri. Metafilosofia: prolegômenos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. 

LIZARRALDE, Gonzalo et al.  Does climate change cause disasters? How citizens, academics, and leaders explain climate-related risk and disasters in Latin America and the Caribbean. International Journal of Disaster Risk Reduction. Volume 58, maio 2021. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S2212420921001394. Acesso em: 10 set. 2025. 

NOROEFÉ, Vitor Hugo. Geógrafa critica privilégios da discussão ambiental. Brasil de Fato. Disponível em: https://sosriosdobrasil.blogspot.com/2014/06/criticas-serias-da-geografa-maria.html. Acesso em: 10 set. 2025. 

PINTO, Álvaro Vieira. A questão da universidade. São Paulo: Cortez, 1994. 

SILVA, Ludovico. Teoria y practica de la ideologia. México: Editorial Nuestro Tiempo. 1971. 

TAVARES, Elaine. Jornalismo nas margens: uma reflexão sobre a comunicação em comunidades empobrecidas. Florianópolis: Companhia dos Loucos, 2004.

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

Memórias do primeiro jornal

Meus 20 anos na redação da FH

Eu era auxiliar de escritório em uma rede de supermercados de Caxias do Sul em meados de 1990. Entrava na segunda fase de Jornalismo e decidi bater na porta do extinto jornal Folha de Hoje para pedir emprego. Consegui um estágio e lá fiquei durante dois anos. Como tantos outros que passaram pelo jornal, a minha relação com a Folha era um caso de amor. 

Havia a Tríade dos Editores – Cancian, Ibanor e Braga. E trabalhava lá o Darci Demetrio, que sabíamos – os repórteres – ter ganho um Prêmio Esso Regional Sul de Jornalismo. Toda semana o Demetrio selecionava uma reportagem para colocar no mural da Redação e comentar. Lembro-me ainda hoje do dia em que a primeira que fiz foi “para o trono”, como dizíamos. Era sobre uma ocupação de famílias empobrecidas ao lado da Prefeitura. Prova de que o tema me percorre há décadas. Recortei o comentário, datilografado em máquina de escrever, e guardei numa pasta de velhas matérias que tenho até hoje.

Eu amanhecia plena de notícias a apurar e escrever, e anoitecia pulsátil, mesmo depois das acabrunhantes viagens diárias a São Leopoldo para cursar jornalismo na Unisinos. 

Na Folha aprendi a adorar a Editorial de Geral, onde está a peonada do jornalismo: Repórter de Geral, em especial de matérias de cidade e meio ambiente. Aprendi a adorar também as botas pretas de cadarço com sola pesada, confortáveis e aptas para qualquer solo e clima. Botinha de Repórter é como as batizei.

Toda manhã as pautas nos esperavam em tirinhas de papel. Cada saída com a equipe repórter-fotógrafo-motorista era uma celebração para mim, “foca” deslumbrada. Digitávamos os textos em PCs com monitor verde em meio ao alarido da Redação, uma sala apenas dividida em Editorias com uns seis PCs cada. Os Editores ficavam no único aquário – a sala com divisória de vidro -  e havia as salas menores de Fotografia e Arquivo, de recebimento de telex e de diagramação e finalização das edições. Ah, que grande azáfama! Papel, bloco, telefones, dicionários, “espelhos”, “bonecos”, dicionários, fotos, canetas, pressa! 

Quando o relógio apontava 17h30, eu, a Rosane Berti e o Samuel Frison corríamos Redação afora, sempre atrasados para encontrar, na Praça, o ônibus para a Unisinos. Havia histórias e risos nessas viagens, sempre tendo a Folha de Hoje como cenário.

As pessoas que trabalharam no jornal organizam confraternizações em Caxias e há um quase consenso em relação aos episódios mais marcantes da história da FH. Um deles foi o dia em que parte do prédio da Prefeitura da cidade pegou fogo. 

Era final de tarde, mas o Cancian, nosso Editor Geral, não precisou chamar ninguém de volta ao trabalho. Estávamos todos lá, uns nos carros do jornal, outros subindo às carreiras a rua Dom José Barea, no alto da qual está, ainda hoje, o Centro Administrativo. Eu e o Samuel chegamos juntos, e ainda hoje me lembro da gafe que cometi. Lá estava o prefeito Mansueto Serafini, uma expressão atordoada no rosto. Eu, afobada pela corrida, lasquei:

- Oi, prefeito, tudo bem!?

Atrás dele, as chamas destruíam parte do prédio! 

Nem bem perguntei, me dei conta da gafe e saí dali rapidinho. Uma insensibilidade de Nero, a minha.

Uma hora depois chega à rua, esbaforido, o então secretário da Educação. Ele conta que uma criança quase fora esquecida no local porque dormia em uma das salas da secretaria. A mãe havia saído e voltou desesperada quando soube do incêndio. Os detalhes da história hoje me escapam, mas eram muitos, e eu e o Samuel resolvemos fazer um texto assinado pelo dois. 

Eu estava então imbuída do espírito dos manuais de redação e – temente àqueles preceitos ridículos - insistia em um texto protocolar. O Samuel, hoje doutor em Literatura, queria fazer uma narrativa quente como as chamas. O texto publicado foi um híbrido, e o episódio da criança, dias a fio, discorrido em nossas viagens a São Leopoldo. 

A Folha fechou de forma melancólica em meados dos anos 1990. Não sei se algum estudante de jornalismo da Universidade de Caxias do Sul contou a história do jornal. Espero que sim. Lá se foram 25 anos. 


Crise climática, meio ambiente e o papel da classe trabalhadora em Santa Catarna

Foto: João de Deus Medeiros


O assalto às terras públicas em geral, áreas de preservação permanente e unidades de conservação, com mudanças na legislação para legitimá-lo, sustenta esta reflexão sobre 1) crise climática, 2) meio ambiente e 3) o papel da classe trabalhadora em Santa Catarina. Compreender a relação entre as três realidades implica desvendar o violento exercício do poder fundiário, conceito desenvolvido pelo historiador Gert Schinke no livro “O poder e a terra: 500 anos de concessões de terras públicas em Santa Catarina”. O poder fundiário, afirma o autor, se traduz na capacidade de projeção de poder político-econômico por parte de pessoas, clãs familiares e grupos empresariais.

Falar em crise climática hoje é como falar em desenvolvimento sustentável coisa de duas décadas atrás. É um guarda-chuva que abriga desde discursos e ações radicais, a serviço da emancipação humana, até o oposto, uma mera justificativa para a contínua venda da natureza, como é o caso do bilionário mercado de compra e venda dos chamados créditos de carbono. Enquanto abatem vidas e áreas inteiras mundo afora, os efeitos da crise climática viram nicho de negócios diversificados. Oportunidades de ampliar lucros, como se verá na Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, a COP30, em novembro (Belém - PA),

Do mesmo modo, falar em meio ambiente ou questão ambiental é aderir à politização em torno do discurso sobre a natureza. As grandes empresas vendem “preocupações ambientais” para a imprensa e os acionistas enquanto exploram e poluem a natureza e silenciam discursos críticos. É preciso então desvendar o palavrório do capitalismo “verde” e chegar às práticas, analisando aqui especificamente o caso de Santa Catarina.

Foi no estado que se potencializou uma conjunção de forças políticas e econômicas que levou às alterações, em 2012, do Código Florestal Brasileiro. O grande articulador do processo foi o então senador Luiz Henrique da Silveira, governador de 2003 a 2010, tendo o Código Ambiental de Santa Catarina como um dos eixos da campanha eleitoral de 2006. Reeleito, nos anos seguintes ele elaborou e aprovou o Código, em 2009, ancorado no “Pacto Federativo como instrumento de Desenvolvimento Sustentável com a União”. O Código mudou de novo, atropelando debates necessários, em 2022, tendo uma série de artigos declarados inconstitucionais pelo Tribunal de Justiça de SC em 2024 por fragilizarem a proteção da Mata Atlântica.

Em 2025, mais uma vez, o Código está no centro do debate político catarinense por causa da definição de onde começam os chamados Campos de Altitude: se a 1.500 metros acima do nível do mar, como diz o Código, ou 400, como diz a legislação federal. O assunto, bastante complexo, foi parar no Supremo Tribunal Federal (STF) depois que o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) multou a empresa Klabin, com base na legislação federal, por converter remanescentes de vegetação de Campos de Altitude em plantios de pinus. Em julho, a revista científica Science, uma das mais respeitadas do mundo, publicou artigo de pesquisadores de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul. Eles apontam que, entre 2008 e 2023, cerca de 50 mil hectares de Campos de Altitude foram convertidos para a plantação de pinus.

A mídia catarinense produziu notícias vergonhosas, assumindo os argumentos dos representantes empresariais e do governador Jorginho Mello (PL). Ele chegou a fazer um vídeo de quase nove minutos direcionado ao STF e à Procuradoria Geral da República em defesa da atuação do estado e das empresas no assunto. Por enquanto, estão suspensos todos os processos judiciais que discutem a validade da norma prevista no Código Estadual do Meio Ambiente.

Paralelo a isto, correm no Congresso Nacional outros projetos que reduzem unidades de conservação, como o Projeto de Lei 849/25, de deputada Geovania de Sá (PSDB-SC), atingindo a Área de Proteção Ambiental da Baleia-Franca. Do mesmo modo, as áreas indígenas e quilombolas no estado estão frequentemente na mira de interesses privados, a serviço do lucro e com representações majoritárias nos legislativos municipais, estadual e federal.

O afã de mudar a legislação aparece também nos planos diretores, especialmente nas cidades litorâneas, em acelerada verticalização, e na legislação sobre unidades de conservação municipais. Em Florianópolis, uma Comissão Parlamentar Especial (CPE), criada para discutir a situação das Unidades de Conservação (UCs) da capital, produziu um relatório preliminar de 46 páginas no qual se vê, camuflada sob um palavrório legal, uma orquestrada tentativa de desconstituir essas unidades, com argumentos já contestados em pareceres apresentados na Câmara.

O relatório cita 11 UCs municipais, indica que representam 33% da área terrestre do município e afirma: “... há vícios jurídicos, administrativos e orçamentários substanciais no processo de instituição e gestão das Unidades de Conservação Municipais em Florianópolis”. Ao final, lista encaminhamentos e recomendações, sendo uma “medida imediata” a “suspensão dos efeitos dos decretos que criaram UCs sem observância do devido processo legal, até a regularização de seus vícios através de decreto legislativo”. A palavra “propriedade” aparece 27 vezes no relatório; “mudanças climáticas”, uma vez. É a mesma Câmara que, em 2023, por maioria, aprovou o Plano Diretor, a atual Lei Complementar 739/2023, atropelando a legislação para favorecer interesses empresariais na lógica da cidade-mercadoria.

Não é de hoje que os grupos dominantes se beneficiam de forma fraudulenta das terras em Santa Catarina. Na obra “O golpe da ‘Reforma Agrária’ – fraude bilionária na entrega de terras em Santa Catarina”, de 2017, o autor, Gert Schinke, através de extensa pesquisa nos arquivos do extinto Instituto de Reforma Agrária de Santa Catarina (IRASC), que funcionou entre as décadas de 1960 e 1970, comprova que, dos cerca de 16 mil títulos de propriedade entregues pelo órgão no estado, em torno de 11.200 poderiam ser considerados no mínimo irregulares pelos critérios que legalmente davam base para a reforma agrária.

Em vez de serem entregues prioritariamente a camponeses, posseiros e pescadores, como previa a lei, as terras foram concedidas a militares, funcionários públicos, empresários pecuaristas e profissionais liberais. Tratou-se de uma fraude fundiária efetivada sob o manto de uma suposta reforma agrária.

Essa crua realidade é silenciada pela mídia hegemônica, que aplaude iniciativas como o “Abril Amarelo”, do governador Jorginho Mello, lei aprovada na Assembleia Legislativa para “promover campanhas de conscientização quanto a comunicação das autoridades policiais no caso de avistar movimentações de invasão de propriedades privadas” e “conscientizar a população sobre a importância da união de proprietários de terra, produtores vizinhos, amigos e família para montar acampamento permanente para evitar a invasão”. Os mecanismos ideológicos – inverter, naturalizar, ocultar e apresentar interesses particulares como se fossem universais – tratam como crime o desespero dos despossuídos por terra e moradia enquanto tentam soterrar no passado a memória das terras usurpadas via antigo IRASC.

QUEM SE PREOCUPA COM A CRISE CLIMÁTICA?

O Tribunal de Contas de Santa Catarina (TCE/SC) determinou, em abril, a realização de um novo processo de acompanhamento da execução orçamentária e financeira da Defesa Civil do estado para o ano de 2025. O motivo: considerável sobra de recursos quando comparados os investimentos previstos com os valores utilizados. Na mitigação, prevenção e resiliência para a redução de riscos de desastres, por exemplo, foram usados apenas R$ 30 mil de R$ 3,11 milhões (0,96%). Em educação continuada em proteção e defesa civil e na ampliação, modernização e melhoria da rede de monitoramento e alerta, o índice foi de 0%.

Detalhe: Santa Catarina é o estado que mais emitiu decretos de calamidade pública (ao menos 4 mil) de 2013 a 2023, segundo a Confederação Nacional dos Municípios. Nesse período, foram registradas 148 mortes em decorrência de situações climáticas. Quase 57 mil pessoas ficaram desabrigadas e ao menos 450 mil foram desalojados por algum tipo de desastre. Tal realidade, porém, aparece publicamente desconectada da crise climática.

A Frente Parlamentar para o Fortalecimento da COP30 na Assembleia Legislativa tem reuniões frequentes, mas ainda não apresentou os termos do documento que será levado ao evento. As entrevistas do deputado Mauro de Nadal (MDB), que preside a Frente, levam a crer que a tônica será a defesa do modelo do agronegócio e da pequena propriedade rural catarinense, que, segundo ele, é produtiva e protege o meio ambiente. O próprio objetivo da frente é ampliar o debate sobre como conciliar sustentabilidade ambiental e produção agropecuária, ou seja, a crise climática não é o centro das preocupações.

A Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável está promovendo audiências regionais para ampliar a participação da sociedade na COP30 e levantar propostas e sugestões de diversos segmentos da população catarinense. A divulgação das audiências já realizadas, porém, até agora é genérica e não ajuda a compreender os dilemas de cada região. Isso a menos de um mês e meio do início da COP30. Os jargões – desenvolvimento sustentável, sustentabilidade – vão constituindo o discurso e substituindo um vocabulário vivo sobre as realidades regionais.

O PAPEL DA CLASSE TRABALHADORA

Pesquisas do DIEESE/SC e do Núcleo de Estudos de Economia Catarinense (NECAT/UFSC) trazem uma série de informações sobre o perfil da classe trabalhadora catarinense. Para este artigo, interessa apenas apresentar alguns fatos para pensar nas formas de enfrentar a realidade já posta.

A classe trabalhadora não tem, em Santa Catarina, um sistema de comunicação que represente seus interesses. Rádios, tevês, jornais, portais, são dominados por empresários e mantidos prioritariamente com dinheiro público, como mostram os repasses mensais feitos a eles pelo governo do estado, Assembleia Legislativa e prefeituras.  Os poucos veículos independentes não chegam à maioria da população, que pouco ou nada sabe da rotina de desmandos que potencializa as tragédias climáticas. Desgraça concretizada, sobram para Deus ou a chuva. Desmontar a ideologia que impede a compreensão da natureza como mercadoria sob o capitalismo exige investimento em jornalismo por parte de sindicatos e movimentos populares em geral, que precisam se unir para viabilizar a visibilidade pública de suas lutas.

Outra medida é cobrar, das universidades públicas catarinenses, a produção de pesquisas necessárias para investigar e expor os impactos da crise climática no estado, cumprindo sua função social. Em Florianópolis, por exemplo, movimentos estão se mobilizando para barrar a verticalização meramente especulativa e sem compromisso com a moradia como direito, com infraestrutura e serviços adequados, como na Armação, Pântano do Sul e Campeche. A pesquisa acadêmica precisa estar a serviço também destas demandas.

De modo geral, os espaços de participação são cada vez mais estreitos. Um exemplo foram as Audiências Públicas do Plano Diretor em Florianópolis em 2022/23. Muita gente falando, ninguém anotando e pouco ou nada do que foi dito apareceu no documento final. Mas a realização por si só de Audiências mal convocadas passa por participação popular quando a prefeitura defende seus interesses e os dos grupos dominantes. Quem é do movimento popular e atua nos chamados Conselhos de Direitos, onde deveria se concretizar a participação social prevista na Constituição Federal, também já percebeu que a energia gasta neles serve mais para referendar abusos e ilegalidades.

Por isso, os mandatos populares, minoria nas Câmaras e na Assembleia Legislativa, precisam ampliar espaços de fiscalização, denúncia e formação. Hoje, esses mandatos também caem na lógica do “caça cliques” e da “lacração” nas redes sociais, onde tudo é efêmero. Porém, há que planejar ações para além da lógica imediatista imposta pelos algoritmos.

É como aponta Eduardo Sá Barreto: investir em formação, denúncia e agitação, radicalizando as pessoas em luta: ‘Fazê-lo de maneira intencional e metódica, não de maneira entregue ao acaso ou à esperança de uma elevação geral espontânea de consciência da classe”.

O poder fundiário usa de coação e coerção todos os dias, no campo e na cidade, para manter seus privilégios. Não é pelas redes sociais que será derrotado. 

Para leitura:

BARRETO, Eduardo Sá. Pequeno guia para a crítica ecossocialista do capitalismo. Marília/SP: Lutas Anticapital, 2025.

MEDEIROS, João de Deus. Campo de Altitude como Ecossistema Associado do Bioma Mata Atlântica. Conselho Regional de Biologia 9ª Região – SC. Disponível em: https://apremavi.org.br/parecer-alerta-para-riscos-na-restricao-de-protecao-dos-campos-de-altitude-em-santa-catarina/ . Acesso em: 10 set. 2025.

NOROEFÉ, Vitor Hugo. Geógrafa critica privilégios da discussão ambiental. Brasil de Fato. Disponível em: https://sosriosdobrasil.blogspot.com/2014/06/criticas-serias-da-geografa-maria.html. Acesso em: 10 set. 2025.

SCHINKE, Gert. O “poder fundiário” no Plano Diretor Participativo de Florianópolis. In: PERES, Lino Fernando Bragança. Confrontos na cidade: luta pelo plano diretor nos 20 anos do Estatuto da Cidade. ITCidades; Arq/UFSC: 2022. Disponível em: https://ldarq.paginas.ufsc.br/files/2022/03/ConfrontosnaCidade-vrtl.pdf. Acesso em: 10 set. 2025.

terça-feira, 22 de julho de 2025

COP 30 Brasil/Belém chegando sem debate nos cursos de jornalismo e na imprensa catarinense

 

A poucos meses da COP 30 Brasil/Belém, há algum curso de jornalismo em Santa Catarina discutindo a relação entre sociedade e natureza nas coberturas jornalísticas? Desconheço. 

O estado volta e meia experimenta eventos climáticos extremos, mas até agora também não vi um bom conjunto de reportagens sobre a inserção de Santa Catarina na COP 30 Brasil/Belém. 

Foi criada uma “Frente Parlamentar para o Fortalecimento da COP-30”, mas as poucas notícias sobre a atuação dos 14 deputados envolvidos reproduzem declarações elogiosas ao “modelo sustentável de produção” do estado e à perspectiva de abertura de negócios do “mercado de carbono”, como esta, no NSC Total: https://www.nsctotal.com.br/noticias/sc-quer-buscar-solucao-para-velho-problema-em-evento-mundial

Enquanto isso, na UFRGS está em plena produção de conhecimento o Laboratório de Comunicação Climática (@comclima.ufrgs) e, de 24 a 26 de setembro, será realizado o VI Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo Ambiental, que terá como tema “A prevenção na pesquisa em Jornalismo Ambiental diante dos desastres”. O evento é uma realização do Grupo de Pesquisa em Jornalismo Ambiental CNPq/UFRGS, com o apoio do PPGCOM/UFRGS e POSCOM/UFSM.

Nesta terça-feira (22), abro o site do Sul 21, do Brasil de Fato RS e do Matinal, exemplos de jornalismo independente do Rio Grande do Sul. Nos três, notícias ou reportagens na capa sobre temas ligados a conflitos urbanos e climáticos. A pauta era frequente nos veículos do estado vizinho mesmo antes do desastre climático que devastou o RS em 2024.

Ao contrário, na terra onde, em março de 2004, passou o Furacão Catarina, lamentavelmente falta apetite para a temática. Falta jornalismo. E ninguém parece se importar. 

sexta-feira, 11 de julho de 2025

Pobres & Nojentas rumo aos 20 anos: uma revista de classe




Elaine Tavares e Míriam Santini de Abreu

Pois agora! Não é que em 2026 a Revista Pobres & Nojentas completa 20 anos! Foi em maio de 2006 que iniciamos a edição impressa da nossa menina, que durou até dezembro de 2013 com 30 edições impressas no formato 23,5 x 21 cm e 28 páginas. Estão ali sete anos de histórias de gentes e lutas populares que faziam pulsar a vida cotidiana de Florianópolis e do estado.

Com o preço do papel inviabilizando a impressão, nosso fazer jornalístico se agarrou ao blog e à conta no YouTube, criados em 2007. O blog tem 355 mil visualizações; o YouTube, 118 mil, com 132 vídeos postados. A conta do Facebook nasceu em 2013 e a do Instagram bem mais tarde, em 2023. 

Desde o nascimento, seguimos na senda de três pilares epistemológicos: a teoria marxista do jornalismo de Adelmo Genro Filho; o jornalismo libertador, inspirado na concepção filosófica de Enrique Dussel, criador da Filosofia da Libertação, e a ideia de croniportagem, vereda entre a crônica e a reportagem.

De lá para cá, fizemos um bocado de coisa e há muito a comemorar.

Uma delas foi apoiar a edição de livros. O primeiro, “Mulheres da Chico”, organizado pela educadora Sandra Cochemore Ribes, a assistente social Vanessa Flores, a fotógrafa Sônia Vill e a equipe da Casa Chico Mendes. Com o apoio da equipe da Pobres, da Letra Editorial e do Sintufsc, o livro foi lançado em 1º de dezembro de 2008 no saguão da Reitoria da UFSC. 

O segundo foi “Seu Antônio – Antônio Joel de Paula – a História de um Líder”, organizado e editado por Sandra Cochemore Ribes (2013). O terceiro, “Contos da Seve – Histórias de Severiana Rossi Correa”, organizado e editado por Eduardo Schmitz com prefácio do jornalista Moacir Loth. 

Em 2008, apareceu a “Pobres & Nojentas Teórica”, um caderno de 36 páginas com três textos da equipe sobre o jornalismo praticado em sindicato. Já em 2009 nasceram dois "Cadernos Soberania Comunicacional” em parceria com o Portal Desacato.

As parcerias renderam e continuam rendendo. Em setembro de 2008, o Portal Desacato e a Pobres realizaram o 1º Encontro pela Soberania Comunicacional, Popular e Libertária na Assembleia Legislativa de Santa Catarina. Em 2010, integrávamos a Rede Popular Catarinense de Comunicação (RPCC), que reunia veículos de comunicação catarinenses que atuavam com base nos princípios e nas práticas da Soberania Comunicacional. O conceito de Soberania Comunicacional é desenvolvido pela jornalista Elaine Tavares como a comunicação popular/comunitária/libertadora que supera a posição de resistência e caminha para a conquista dos meios massivos, articulada aos que lutam para transformar o mundo, avançando para o novo e sendo capazes de pavimentar outra práxis.  

A Rede foi o resultado de dois Seminários de Comunicação e Cultura Popular organizados pela então Agência Contestado de Notícias Populares (Agecon), uma das integrantes da RPCC, tendo à frente o educador Jilson Carlos Souza, hoje envolvido em iniciativas de comunicação e organização popular na Região do Contestado. 

Em outubro de 2013, apareceu a “Pobres & Nojentas no Mercado”, na conta do YouTube da revista, com entrevistas gravadas em um dos mais “nojentos” pontos de encontro da capital catarinense, o Bar do Alvim, no Box 1 do Mercado Público, onde, antes da “gourmetização” do Mercado, a gente se encontrava para buscar o alimento do corpo e da luta. 

Ao longo da caminhada, uma alegria para a equipe foi depositar as 30 edições da Pobres na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. Todas as edições foram depositadas também, em formato impresso e digital, na Hemeroteca Digital Catarinense, que cuida da memória do jornalismo catarinense. Estão aqui: http://hemeroteca.ciasc.sc.gov.br/revistas.html

A Pobres era uma inspiração para muita gente que desejava fazer jornalismo fora das grandes redações. Foi por ler a revista quando ainda morava em Minas Gerais que o agora jornalista Rubens Lopes de Souza escolheu a Pobres como tema de seu Trabalho de Conclusão no Curso de Jornalismo da UFSC, apresentado em 2017 com o título “Jornalismo libertador: a estrutura e a dinâmica da revista Pobres & Nojentas”. 

Em 2020, em plena pandemia de Covid-19, publicamos o primeiro livro da coleção “Jornalismo no Coletivo”, nascida na parceria com a jornalista Sandra Werle (Letra Editorial), que, com a jornalista Rosangela Bion de Assis, diagramava a revista impressa. Foram os seguintes: “A rebelião do vivido no jornalismo independente de Florianópolis” (2020). “Território e texto: jornalismo ambiental em Santa Catarina” (2023) e “Jornalismo e comunicação sindical em Santa Catarina” (2024). Publicamos ainda o livro “A atualidade da obra do jornalista Marcos Faerman”, em parceria com VU Produtora, de Laura Faerman (2023).

Apostando no vídeo, em 2023 iniciamos o projeto “Repórteres SC”, agora com 29 entrevistas, e o “Trajetórias e Histórias”, com 2 episódios. Em 2024, foi a vez do projeto “Escadarias do Maciço”, para o qual produzimos três episódios. Em dezembro de 2024, apareceu o “Conversas na Tiradentes”, parceria com a Livraria Desterrados, do Tasso Scherer, já com 10 programas. 

Em breve, divulgaremos um conjunto de vídeos com parceiros desta jornada e lançaremos mais um novo projeto. Este é surpresa!

São 20 anos de aventuras jornalísticas guiadas pela frase de abertura do manifesto publicado no número 1 da revista: cooperativa da palavra libertária, criadora, caminheira. 

Jornalismo Ambiental: totalizar os resíduos

  Ato no Sul da Ilha de Santa Catarina contra a verticalização - Milton Ostetto A realização no Brasil da 30ª Conferência das Nações Unidas ...