quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Sul21 e o jornalismo a serviço da pauta ambiental nascida no cotidiano

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O site de notícias independente Sul21 publicou, às vésperas do primeiro turno das Eleições 2024, a série de reportagens “Raio-X das Periferias” sobre as principais demandas de moradores dos quatro bairros mais populosos de Porto Alegre para o período eleitoral. A iniciativa, que incluiu os bairros Rubem Berta, Restinga, Sarandi e Lomba do Pinheiro (veja em bit.ly/3Ny1G25), é um exemplo significativo para relacionar cotidiano, espaço e pauta ambiental em tempos nos quais a população elege seus representantes na dita (e tão limitada) democracia representativa.   

No senso comum, cotidiano é o que ocorre todos os dias, o banal, o corriqueiro, o repetitivo. Mas nele também nasce a ruptura, a possibilidade de transformação social. O novo, afinal, emerge no cotidiano, e é no espaço que esse cotidiano, em sua riqueza e miséria, se realiza. As transformações pelas quais passa o jornalismo como fazer profissional e também como negócio, porém, afastam o jornalista do cotidiano e do espaço. Redações cada vez mais enxutas levam a coberturas magras, parte delas feitas por telefone ou redes sociais, levando portais noticiosos a terem “cara” de vitrine para boletim de ocorrência. 

Em sentido oposto, a série do Sul21 traz diversidade de fontes e descrições expressivas do cotidiano e do espaço geográfico dos quatro bairros, onde aparece a errância de populações continuamente expulsas ou em busca de melhores condições de vida, situação agravada pela penosa tentativa de recuperação depois das enchentes catastróficas que atingiram o Rio Grande do Sul.

A debilidade dos serviços públicos, as dificuldades de locomoção, a falta de opções de lazer – todas elas relacionadas à pauta ambiental – vão sendo apresentadas ao longo das entrevistas para expor o abandono do poder público, as promessas que não se cumprem, as tentativas de organização popular para superar as carências do cotidiano. Aparecem ainda as conquistas via Orçamento Participativo, mas também as críticas aos limites deste instrumento de liberação de recursos públicos. 

A série utiliza dados do Atlas de Vulnerabilidade Social desenvolvido no curso de Geografia da UFRGS, informação do mundo acadêmico a serviço da interpretação jornalística do espaço geográfico. Na reportagem sobre o bairro Rubem Berta, aparece menção ao jornal comunitário local Fala Cohab, a revelar o papel ainda vivo da comunicação comunitária. A série de reportagens “Raio-X das Periferias” é mais uma a confirmar o importante papel do Sul21 no jornalismo gaúcho e regional. Que as vozes que carrega em seus textos tão bem encaixados sejam ouvidas e levadas em conta por quem comandar Porto Alegre pelos próximos quatro anos. 

quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Ensaio apresenta método de reportagem para trazer o espaço ao texto


Divulgado o Caderno de Trabalho 1 do Grupo de Trabalho 15 (Comunicação e Cidade) da Associação Latino-americana de Investigadores de Comunicação (ALAIC). Intitulado “Habitar em tempos de transformações”, o caderno traz meu ensaio “Jornalismo e espaço: método de reportagem”, a partir da página 22. 

O ensaio aponta elementos para um método de reportagem capaz de permitir ao jornalismo e aos jornalistas se situarem no espaço e no texto. Ele nasceu a partir da leitura de Adelmo Genro Filho, pesquisador e professor brasileiro criador de uma teoria marxista do jornalismo, e da obra de Henri Lefebvre, ambas enlaçadas em minha tese sobre o espaço no jornalismo (2019). O enlace deixou uma ponta solta agora explorada, a ideia de o método regressivo-progressivo de Lefebvre contribuir para a construção de um método na reportagem capaz de alcançar, de forma crítica, as temporalidades e espacialidades com as quais os jornalistas lidam na cobertura jornalística do e no espaço.

O Caderno de Trabalho com o ensaio está neste link: https://itcidades.org.br/wp-content/uploads/2024/08/Cuaderno-1-GT-15-ALAIC.pdf

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Política, jornalismo e olhos de libélula

 


Há poucos dias, caminhando nas proximidades da Câmara de Vereadores de Florianópolis, ouvi uma conversa. Um rapaz perguntava a uma moça sobre um vereador:

– Mas ele é de que bairro?

Isso de vereador “de bairro” deve ser herança das Intendências. E quem acompanha a Câmara de Florianópolis nota que a política ali se move pelo bairro. Não é por acaso o desconhecimento, desinteresse, estupidez e má-fé da maioria dos legisladores pelos grandes temas da cidade. Só tratam da vida do bairro, onde muitas vezes reina a troca de favores por votos. Vereador “da cidade” são poucos, aqueles de olhos de libélula para ver a cidade de cabo a rabo.

Daí nasce a reflexão para hoje: falar de “meio ambiente”, “desenvolvimento sustentável” e “justiça climática” agora é moda em campanhas eleitorais da esquerda à direita. É “politicamente correto” incluir o tema nas propostas para o Executivo e o Legislativo. Mas há que recordar uma reflexão do geógrafo Milton Santos: o discurso sobre a coisa, no nosso tempo, tomou o lugar da coisa. Nas redes sociais é pior ainda.

Então o caminho para ver o que está atrás do discurso é a práxis. Ação na vida cotidiana orientada por conhecimento. Um critério: onde estavam e como se movimentaram os corpos desses discursos nas grandes lutas da cidade para defendê-la dos vendilhões a serviço do lucro de poucos?

Algumas grandes lutas: 1) o Levante do TAC (Teatro Álvaro de Carvalho), em 2010, contra a proposta de revisão do Plano Diretor do então prefeito Dário Berger; 2) a mobilização popular contra a instalação do Estaleiro da OSX em Biguaçu; 3) a irrupção da Ocupação Amarildo de Souza no Norte da Ilha, gerando inédita criminalização jurídico-midiática; 4) a mobilização popular em 2013 e 2014 mais uma vez em protesto contra as mudanças no Plano Diretor na gestão do então prefeito César Souza Júnior, sob forte repressão policial; 5) a luta pela Ponta do Coral 100% Pública e contra os emissários submarinos e seus impactos ambientais, assim como as grandes marinas, os “engordamentos” de praias e a despoluição de baías, que consumiu milhões para nada; 6) a defesa das lagoas, rios, águas marinhas, manguezais, restingas, áreas de preservação permanente e unidades de conservação; 7) a mobilização popular a partir de 2020 mais uma vez em protesto contra as mudanças no Plano Diretor na gestão do então prefeito Gean Loureiro e depois de seu vice e hoje prefeito, Topázio Neto, mudança esta sacramentada em melancólica votação na Câmara de Vereadores em 2023.

A falta de memória beneficia quem some com o corpo e aparece com o discurso. O jornalismo local, a serviço e a soldo dos interesses da atual gestão da prefeitura, joga a pá de cal na possibilidade de confrontar as candidaturas. Perguntas que não perguntam, respostas que nada dizem, encenação de jornalismo e de política.

Uma aula sobre como fazer? A edição de 26/27 de abril de 1986 no Jornal de Santa Catarina, o velho Santa impresso, que encontrei graças à jornalista Roseméri Laurindo, que entrevistamos para o projeto Repórteres SC, da equipe da Pobres & Nojentas. Ela guardou, entre outras, uma página dupla do standard, sem anúncio, com o seguinte título e linha de apoio: “OCUPAÇÃO DO SOLO: em debate as garantias de preservação da Ilha”. Ali está a síntese de uma mesa-redonda organizada pelo Santa, de duas horas e 30 minutos, para debater a regulamentação do chamado Plano Diretor dos Balneários e o processo de urbanização da capital. Foram nove convidados de diferentes campos de atuação e pontos de vista.

Em apenas duas páginas, um instigante retrato da cidade naquele período, ainda mais hoje, quando a prefeitura e o empresariado são as fontes predominantes a desfilar no jornalismo local revirando a cidade, plantando cimento e falando em “inclusão” e “desenvolvimento sustentável”. Destaque para as perguntas da jornalista: inteligentes, provocativas, capazes de instigar os entrevistados a efetivamente se expor, olho no olho, na mesa do jornal e na edição depois impressa. Roseméri e o Santa fizeram outras dessas, uma delas sobre a falta de moradia em Santa Catarina nos anos 1980 e com a qual estou escrevendo um artigo. Bah, Rose!

A eleição se alimenta da desconexão da política com a vida cotidiana, real, concreta. Desconexão que também é a marca do que se pratica como jornalismo hoje. Há que perseguir o Jornalismo. O Jornalismo que dá a volta nas coisas para nelas flagrar o mal dito no discurso. O escritor José Saramago ensina isso no documentário “Janela da Alma”. Ele fala sobre a coroa mui apreciada do Camarote Real no Teatro de Lisboa. De longe e de frente, enorme, dourada, magnífica. Mas, vista de trás, oca, repleta de pó e teias de aranha. Logo ele aprendeu uma lição da qual nunca se esqueceu: “Para conhecer as coisas, há que dar-lhes a volta. Dar-lhes a volta toda."

Sim! Político “da cidade” tem que ter olhos de libélula. E jornalista também!



Artigo mostra iniciativas da mídia independente que abordaram/abordam as lutas por moradia em Santa Catarina


Episódios importantes das lutas por moradia em Santa Catarina foram e são contados por um conjunto bastante variado de iniciativas de comunicação/jornalismo. Identifico neste artigo, para o Instituto Cidade e Território (ITCidade), do qual sou colaboradora, parte destas iniciativas – totalizando 11 – dos anos 1980 até a atualidade, na região de Florianópolis/SC, buscando abrir caminhos às pesquisas que aprofundem a análise dos materiais apresentados.

As iniciativas listadas são da chamada mídia independente – sem desconhecer o fato de que a mídia tradicional também aborda as lutas, ainda que de forma eventual e, de regra, criminalizando seus protagonistas – e de organizações à frente das lutas por moradia no estado.

Confira em bit.ly/3WU4muT

segunda-feira, 1 de julho de 2024



Há 20 anos defendi, no Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), minha dissertação, intitulada “O discurso jornalístico do desenvolvimento sustentável: uma interpretação sob o ponto de vista geográfico”, com orientação do professor Nazareno José de Campos. Ela virou livro pela editora da mesma universidade, com o título “Quando a palavra sustenta a farsa: o discurso jornalístico do desenvolvimento sustentável”.

Percorri três diferentes áreas de conhecimento, Geografia, Jornalismo e Análise de Discurso, para a pesquisa. Abordei a origem do conceito, ligando-o aos debates sobre a relação entre sociedade e natureza no Brasil e, especificamente, em Santa Catarina. Para isso, trabalhei com a categoria de formação socioespacial, aliada ao entendimento do meio geográfico atual como um meio técnico-científico-informacional, no caminho da obra do geógrafo Milton Santos. No jornalismo, situei historicamente a apropriação da problemática ambiental pelos meios de comunicação, na perspectiva do jornalismo como forma de conhecimento da realidade cristalizada no singular, como ensina o mestre Adelmo Genro Filho. Para fazer a análise dos dois veículos de comunicação selecionados, o JB Ecológico (Jornal do Brasil) e o AN Verde (então encartado em A Notícia), optei pela linha francesa da Análise do Discurso.

Com a pesquisa, concluí que o discurso em geral sobre a natureza é, fundamentalmente, um discurso político, de poder, construído também a partir do espaço. Com base nessas relações de poder, o discurso jornalístico do desenvolvimento sustentável produz efeitos de sentido predominantemente empresariais, mesmo quando o sujeito-jornalista se propõe a formular um discurso sobre a preservação (intocabilidade) da natureza.

Observa-se que, de uma forma ou de outra, diferentes formações socioespaciais deixam vestígios no discurso jornalístico. Esses vestígios evocam manifestações concretas (desmatamento, poluição) da relação entre sociedade e natureza. O espaço geográfico, porém, é interpretado principalmente a partir da ótica dos atores hegemônicos ou do discurso da ciência. Sobra pouca ou nenhuma possibilidade para que outros atores sociais produzam suas próprias interpretações sobre os conflitos que se estabelecem nos diferentes lugares onde os discursos jornalísticos são formulados.

A dissertação está em https://pergamum.ufsc.br/acervo/203417

De lá para cá, aprofundei no doutorado do Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da UFSC minhas pesquisas sobre o espaço no jornalismo. Defendi a tese há quase cinco anos, em agosto 2019.

Hoje, uma nova farsa espreita, e 20 anos atrás eu já a citava: os tais mercados de carbono. O tema é ausente na mídia de Santa Catarina, mas, em veículos nacionais, está aparecendo com mais frequência.

Temas, como diria o Senhor Spock, fascinantes!

quarta-feira, 29 de maio de 2024

O papel dos veículos independentes na cobertura da catástrofe do Rio Grande do Sul

 

Reprodução Brasil de Fato -  Vitor Shimomura / Brasil de Fato

Veículos independentes como o Sul 21, Brasil de Fato RS, Agência Pública e Intercept Brasil, entre outros, estão cumprindo um papel dos mais relevantes na cobertura da catástrofe do Rio Grande do Sul. Os quatro operam à margem da mídia hegemônica, que se refestela com recursos públicos e faz cada vez menos jornalismo. Os veículos citados trouxeram ao debate fatos ignorados, ocultados ou mal divulgados pela imprensa tradicional, mais preocupada em tentar blindar a incompetência de prefeitos e do governador do estado. Entre esses fatos estão aqueles caros ao jornalismo ambiental.

O Sul21, no dia 6 de maio, na reportagem intitulada “Tragédia histórica expõe o quanto governo Leite ignora alertas e atropela política ambiental”, assinada por Luciano Velleda, (bit.ly/3wRHDXE), detalha as críticas de organizações não-governamentais ao governo do estado em relação às mudanças no Código Estadual do Meio Ambiente e à iniciativas como a construção de barragens em áreas de preservação da natureza.

O Brasil de Fato RS tem publicado várias reportagens a partir da periferia de Porto Alegre, ouvindo populações empobrecidas que perderam o pouco que tinham e enfrentarão dificuldades inimagináveis para recompor o cotidiano. Uma delas foi a reportagem intitulada “Em bairro 'esquecido' de Porto Alegre (RS), enchente faz emergir solidariedade” (bit.ly/3wJ7otf), assinada por Murilo Pajolla e publicada no dia 27 de maio.

Outra reportagem do Brasil de Fato RS, intitulada “Com 180 mil pessoas atingidas pela enchente, Canoas tem atendimento do CRAS interrompido” e assinada por Clara Aguiar em 21 de maio (https://abrir.link/gwxvN), repercutiu e serviu de base para denúncia junto ao Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul (MPRS). A repórter, em sua conta na rede social Instagram (@claguiar), avalia a repercussão do relato sobre as dificuldades enfrentadas pelas famílias vítimas da enchente ao tentarem se cadastrar no CadÚnico em Canoas, município vizinho de Porto Alegre. O cadastramento é essencial para que pessoas atingidas possam ter acesso aos benefícios do governo estadual e federal. “O jornalismo de impacto desempenha um papel crucial especialmente nesse momento em que milhares de vítimas da enchente buscam auxílio e informações confiáveis”, comenta Clara Aguiar na postagem.

Com o título “O passo-a-passo da inoperância no RS, segundo um dos responsáveis por alertar as autoridades” (bit.ly/4bBFzls), o Intercept Brasil divulgou reportagem assinada por Paulo Motoryn e Marcelo Soares no dia 15 de maio revelando grave conflito de interesses: uma das empresas responsáveis pela manutenção do sistema de contenção de inundações de Porto Alegre tem, entre seus sócios, um ex-funcionário da prefeitura que, por dois anos, foi o responsável por sua fiscalização.

No dia 22 de maio, a Agência Pública divulgou a reportagem intitulada “Militares e políticos sem experiência estão à frente da Defesa Civil em cidades do RS” (bit.ly/3VkpXNQ), assinada por Rafael Oliveira, tendo, para isso, analisado o orçamento empenhado para a Defesa Civil por esses municípios e pelo estado nos últimos três anos. Os dados foram extraídos diretamente do Sistema de Informações Contábeis e Fiscais do Setor Público Brasileiro (Siconfi), abastecido pelos próprios governos estaduais e municipais.

As reportagens mencionadas são exemplos do conjunto da cobertura dos quatro veículos, que disponibilizam, em suas páginas, outros textos tão significativos quanto os acima citados.

A designação de imprensa/jornalismo tradicional, também chamada de convencional, faz referência aos grupos e empresas controladoras do setor no Brasil. Sobre o jornalismo independente, há inúmeras pesquisas que investigam o tema, sendo uma delas o trabalho de M. Silva (2017), que mapeia 30 iniciativas criadas entre 2013 e 2015 no Brasil, por ela denominadas novas experiências de jornalismo. Segundo a autora, as expressões geralmente aplicadas a esse tipo de iniciativa – jornalismo independente, jornalismo alternativo, mídia radical, mídia contra-hegemônica – não dão conta de toda a variedade de propostas que compõem tais iniciativas.

Este artigo toma o papel da imprensa tradicional/hegemônica como o de manutenção da ordem social e, em contrapartida, o da imprensa independente/alternativa/contra-hegemônica como o de crítica a esta ordem para a construção de outro modo de organização social. Os quatro veículos citados, em maior ou menor grau, explicitam essa perspectiva, e de forma concreta trazem ao fazer e ao discurso jornalístico um conjunto de temas, pontos de vista e fontes invisibilizadas ou negligenciadas no debate público.

Nesta direção, prestam-se ao exercício do direito à fala e à escrita muitas vezes proscrita na imprensa tradicional.

Idealizador da ideia do direito à cidade, Henri Lefebvre, em artigo no livro “Du Contrat de Citoyenneté”, publicado em 1990, lista o que nomeia como “Os novos direitos do cidadão”. Entre eles estão o direito à informação e o direito à expressão. Diz Lefebvre que um cidadão não deve nem pode ficar calado sobre o que o preocupa e que lhe diz respeito, mesmo que apenas indiretamente: “Isso é muito: todos os assuntos da sociedade preocupam todos os membros. Daí o direito de refletir, de falar, de escrever” (LEFEBVRE, 1990. p. 34).

É possível afirmar que no nascedouro da catástrofe que se abate sobre o Rio Grande do Sul estão também esses direitos sufocados ou mal-ouvidos pelas autoridades hoje apressadas em se livrar de sua cota de responsabilidade. Que bom termos veículos como os quatro citados, entre outros, para trazer à tona fatos que, para essas autoridades, deveriam estar convenientemente esquecidos. Sobrevivem a duras penas e fazem jornalismo à altura desses duros tempos. 

Referências 

LEFEBVRE, HENRI et LE GROUPE DE NAVARRENX . Du Contrat de Citoyenneté. Paris: Editions Syllepse et Editions Periscope, 1990. 

SILVA, Mariana da Rosa. Tensões entre o alternativo e o convencional: organização e financiamento nas novas experiências de jornalismo no Brasil. Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina. Santa Catarina, 2017. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/185627. Acesso em: 28 maio. 2024. 

* Jornalista, doutora em Jornalismo, mestre em Geografia e especialista em Educação e Meio Ambiente


sexta-feira, 17 de maio de 2024

Catástrofe climática e o Jornalismo de Ocorrência em Santa Catarina

Capa do caderno do Grupo NSC


A proporção da catástrofe que se abate sobre o Rio Grande do Sul provoca uma pergunta: como Santa Catarina se prepara, levadas em conta suas próprias características socioespaciais, para enfrentar as consequências das mudanças climáticas? Procura em vão quem busca respostas nos grupos de mídia do estado. Esses grupos, organizados em associações, tecem seus interesses com as estruturas do estado, irrigando-se de dinheiro público e privado para fazer cada vez menos jornalismo. 

Parte expressiva do que virou a dita cobertura jornalística no estado vive de divulgação de BOs, os Boletins de Ocorrência. É um Jornalismo de Ocorrências, em que inexistem conexões entre elas e outras noticiadas antes ou depois, desprezando a compreensão de que não basta, no processo de mediação jornalística, limitar-se a ininterruptamente noticiar fatos sem inseri-los na totalidade dos fenômenos dos quais fazem parte e que os explicam.

A catástrofe no Rio Grande do Sul foi capa, por exemplo, do caderno do Grupo NSC (11 a 17 de maio) em abordagem previsível, a solidariedade: 

A SOLIDARIEDADE CATARINENSE

Santa Catarina se une para ajudar as vítimas da catástrofe climática que devastou o Rio Grande do Sul, deixou mais de 100 mortos, milhares de desabrigados e centenas de cidades tomadas pela água.

Quem estuda análise de discurso sabe que os sentidos se movimentam. Por vezes, uma mesma palavra, por estar inserida em diferentes formações discursivas, pode significar diferente, como no caso da palavra "terra" no discurso de um sem-terra ou de um latifundiário. Em outras vezes, palavras diferentes podem ter o mesmo sentido por se inscreveram em uma mesma formação discursiva. Isso é ilustrativo na pesquisa de MARIANI (2001) sobre os sentidos da solidariedade na mídia impressa. Ela verificou que a palavra forma uma rede parafrástica (de paráfrases) que inclui “caridade", "ajuda” "filantropia", "novas faces do bem” e “mão estendida". Apesar de serem palavras diferentes, a autora observa que na mídia o que pode resvalar para a produção de diferentes eleitos de sentidos muitas vezes se fecha em sentidos atomizados, produzindo ilusões de consenso social (p. 43). 

De modo geral, as coberturas sobre o Rio Grande do Sul mostram a ação dos solidários e solidárias e a ininterrupta videoteca da tragédia cotidiana nas cidades gaúchas destruídas. Mas por que a catástrofe ocorreu na relação com sucessivos crimes ambientais? Quem são os responsáveis? Leitores, ouvintes e telespectadores não terão respostas satisfatórias nesses grupos de mídia.

Essa ausência, na perspectiva de Santa Catarina, grita em um exemplo impactante. Uma notícia de fevereiro passado no site do Tribunal de Contas de Santa Catarina revela que cerca de 3 mil áreas de 100 municípios do estado têm maior risco de deslizamentos de solo e de inundações (1). O levantamento realizado apontou o seguinte:

- ausência de órgãos de proteção e defesa civil formalizados em 13 deles

- ausência de Fundo Municipal de Proteção e Defesa Civil (Fumdec) em 49 municípios

- ausência de Plano Municipal de Contingência (Plamcon) em 34

- ausência de locais cadastrados para uso como abrigos em 31 cidades

- 79 não realizam exercícios simulados conforme o Plamcon, ou seja, apenas 19 realizam 

- ausência de canais de comunicação com as famílias que residem em áreas de risco em 55 municípios 

- 74 municípios com áreas de risco mapeadas afirmaram não possuir cadastro das famílias residentes em áreas de risco

- ausência de fiscalização periódica das áreas com riscos de desastres por 36 cidades

- 72 municípios disseram que o art. 42-A da Lei 10.257/2001 — Estatuto da Cidade — não foi observado na edição ou na revisão do Plano Diretor

A notícia foi reproduzida de forma protocolar em sites noticiosos de Santa Catarina. Os dados não mereceram investigação, e são ainda mais alarmantes quando associados a um fato divulgado no “SC em Pauta” em 22 de fevereiro de 2024: mesmo sendo um estado propenso a diversos eventos climáticos extremos, Santa Catarina não tem um quadro efetivo na Defesa Civil. O órgão é formado basicamente por comissionados, terceirizados e alguns servidores cedidos, sendo nomeados como cargo de confiança (2).

Estão aí aspectos da pauta até agora invisibilizada nesse Jornalismo de Ocorrências. E isso sem contar o papel de Santa Catarina na destruição da legislação ambiental federal, iniciada nos mandatos do governador Luiz Henrique da Silveira, analisada brevemente em artigo intitulado “Código Florestal Brasileiro e Código Ambiental de Santa Catarina: legislação a favor do lucro” (3). Assim como fez o Rio Grande do Sul, Santa Catarina alterou o Código Ambiental em 2009 e em 2022. Uma análise dos retrocessos do novo código pode se lida na página da Associação de Preservação do Meio Ambiente e da Vida (Apremavi) (4).

O resultado dessas mudanças aparecerá. E pegará a população (e o jornalismo) de surpresa.

A SITUAÇÃO DA MÍDIA EM SANTA CATARINA

Não há um diagnóstico recente e público da mídia em Santa Catarina para permitir uma análise mais detalhada e de interesse para jornalistas, professores e estudantes de jornalismo e interessados no apagão de coberturas fundamentais para o estado. Uma parte do diagnóstico aparece em artigo de Giovanni Ramos e Magali Moser, de junho de 2023, intitulado “O triste fim dos três grandes jornais catarinenses” (5). Ele mostra como sucumbiram três marcas regionais históricas: Diário CatarinenseA Notícia e Jornal de Santa Catarina

Há um aspecto da realidade regional que merece pesquisa profunda: o montante de recursos públicos que jorra para a Acaert (Associação Catarinense de Emissoras de Rádio e Televisão) e a Associação dos Jornais do Interior de Santa Catarina (Adjori-SC). A Acaert  representa 260 emissoras de rádio e 24 emissoras de televisão associadas, congregando 100% das emissoras comerciais e educativas de Santa Catarina. A Adjori tem 104 empresas jornalísticas associadas, circulando em praticamente todos os 295 municípios de Santa Catarina.

Entre 2017 e 2019, foi criada e vendida como a maior campanha social de Santa Catarina a campanha da Acaert JEITO CATARINENSE, que mobilizou milhares de catarinenses em torno dos conceitos básicos de “cidadania”. A iniciativa contou com a parceria de instituições públicas e privadas tendo com um dos temas principais, por exemplo, uma campanha A FAVOR DA REFORMA DA PREVIDÊNCIA (6). A reforma perversa, no governo Bolsonaro, atendeu o interesse empresarial e tem seus efeitos apresentados em uma série de artigos disponíveis para consulta na internet.

Entre 2020 e 2022, a Acaert assinou convênio inédito com o Tribunal de Justiça, o Ministério Público e o Tribunal de Contas, além da manutenção e aprimoramento do convênio com a Secom (governo do estado) e a Assembleia Legislativa (Alesc). Ou seja, há um enlaçamento da Acaert com todas as estruturas de poder do estado. 

Para compreender o tamanho desse enlaçamento, um exemplo foi a renovação, em 2020, do convênio Alesc e Acaert para divulgação de notícias do Legislativo em todas as emissoras de rádio e televisão do estado.

O contrato está disponível em link no final deste artigo (7). Ele não menciona valores, mas basta uma procura rápida no site da Alesc para localizar centenas de contratos. A palavra “rádio” traz 41 páginas com contratos (8). Algumas perguntas merecem resposta:

-Quanto somam os contratos ao longo de cinco anos de repasses para um convênio no qual a Acaert indica os beneficiários?

-Quanto a Alesc destina para veículos consolidados de mídia independente e fora da alçada da Acaert e da Adjori, como, em Florianópolis, por exemplo, o Portal Desacato e o Portal Catarinas?  

Ou o dinheiro que irriga Francisco para defender a Reforma da Previdência não irriga Chico para mostrar seus efeitos nefastos?

Além dessas indagações, seriam relevantes análises sobre o conteúdo do material produzido pela Alesc distribuído por essas rádios e sobre o conteúdo geral produzido por elas. Se existem, não foram localizados. Mas um rápido giro pelo noticiário revela que, do ponto de vista jornalístico, não respeitam sequer a regra mais básica do jornalismo liberal, que é “ouvir o outro lado”, cotidianamente criminalizando as lutas populares e sindicais. Estão aí temas gritando por pesquisas de mestrado e doutorado.

É importante destacar que os grupos de mídia de Santa Catarina também recebem recursos públicos vindos das prefeituras para divulgação dita institucional, montante igualmente desconhecido. 

Não nos enganemos. O cenário aqui esboçado é um projeto gestado e cuidadosamente mantido por quem lucra com a mentira, a ideologia e a desinformação. Resta-nos revelar o que se vê pelas frestas. E recordar das palavras do jornalista Marcos Faerman, sempre:

Manifesto de libertação da palavra. 

A busca de uma realidade exige uma linguagem capaz de captá-la. Esta linguagem não é uma fuga. É o único caminho para nos levar à débil captação de uma sociedade e de suas contradições. E da única coisa que interessa: o ser humano sufocado em sua vontade de ser.


Notas:

1-https://www.tcesc.tc.br/levantamento-do-tcesc-revela-que-municipios-catarinenses-com-areas-de-risco-de-deslizamentos-e

2-https://scempauta.com.br/2024/03/22/mp-pede-explicacao-sobre-servidores-da-defesa-civil-governo-pagara-gratificacao-a-quem-atuar-na-dc-ub-se-aproxima-do-pl-em-blumenau-entre-outros-destaques/

3-https://ojs.sites.ufsc.br/index.php/rebela/article/view/2770

4-https://apremavi.org.br/mpsc-ajuiza-acoes-para-impedir-alteracoes-no-codigo-ambiental-de-sc/

5-https://objethos.wordpress.com/2023/06/15/o-triste-fim-dos-tres-grandes-jornais-catarinenses/

6-https://www.acaert.com.br/noticia/39317/acaert-lanca-campanha-em-favor-da-reforma-da-previdencia-no-estado-e-nos-municipios-catarinenses

7-https://spectro.alesc.sc.gov.br/contratos/contrato/2626/download

8-https://transparencia.alesc.sc.gov.br/contrato.php?pagina=1&ano=&numero_contrato=&objeto=&contratada=r%E1dio&cpf_cnpj=&status=&tipo_contrato_id=&modalidade_id=Todas&valor_min=&valor_max=


Referência:

MARIANI, Bethania. Questões sobre a solidariedade. In: ORLANDI, Eni P. (Org.). Cidade atravessada. Os sentidos públicos no espaço urbano. Campinas: Pontes, 2001.

Sul21 e o jornalismo a serviço da pauta ambiental nascida no cotidiano

Print screen de tela O site de notícias independente Sul21 publicou, às vésperas do primeiro turno das Eleições 2024, a série de reportagen...